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CORRENTES D’ESCRITAS, PEDAÇO DE UTOPIA POSSÍVEL
Acadêmico: Ignácio de Loyola Brandão
"Até hoje, ninguém esqueceu a gargalhada estentórea de João Ubaldo Ribeiro. Desta 18a Correntes trago a risada esfuziante de Inês Pedrosa, a alegria por reencontrar Almeida Faria, amizade de 40 anos, belíssimo escritor"

PÓVOA DO VARZIM, Portugal “O que faz a singularidade destes encontros em Póvoa do Varzim é acima de tudo o modo como as Correntes se processam, o ritmo que os seus organizadores lhe imprimem, com a noção do que é literário. (…) Talvez esse seja o segredo do êxito. A certeza de que em chegando fevereiro, numa cidade portuguesa à beira do Atlântico, pelo menos durante uma semana, um pedaço de Utopia é possível,” disse Lidia Jorge, celebrada escritora portuguesa.
Para se ter ideia do que foram as Correntes d’Escritas nestes 18 anos de existência basta dizer que houveram mais de mil intervenções de escritores a maioria com os auditórios a “rebentar pelas costuras”, como se diz por aqui. E muitos participantes, como editores, críticos, agentes literários, jornalistas, professores, leitores. Mais de 50 mil leitores passaram pelas conferências, mesas redondas, lançamentos de livros, sessões de poesia, teatro, cinema, encontros de escritores com estudantes, entregas de prêmios. Foram 150 mesas redondas e cerca de 170 sessões com jovens estudantes. Lançaram-se mais de 300 novos livros e fizeram-se mais de 40 sessões de poesia.
“As Correntes, organizadas pela Câmara da Cidade, começaram em 2000 e a ideia foi fazer um festival que juntasse escritores de todos os países de língua portuguesa e de língua espanhola (incluindo catalã e galega), dos vários continentes, “ explicou-me José Carlos Vasconcelos, diretor do quinzenário Jornal de Letras que inveja, falta-nos isso - anfitrião, um colaborador e divulgador permanente das Correntes. “ Não havia cá nenhum acontecimento com essas características, e ele foi crescendo até se tornar, como o Presidente da República disse na abertura, o principal ou o mais importante de Portugal. Há um núcleo de meia dúzia de escritores que participam desde o início - espécie de escritores "residentes". Alguns já vieram várias vezes, todos os anos. Sempre bastantes pela primeira vez e a estrutura da organização é a que viste, tendo tido progressivamente coisas novas.
“Da África já estiveram todos os principais escritores. Lembro-me de um ano em que se juntaram aqui em Póvoa, de Angola, todos mesmo, de uma só vez, o Luandino, o Pepetela, o Ruy Duarte Carvalho, o Agualusa, a Ana Paula Tavares, o Ondjaki, o Manuel Rui, o João Melo - em Angola mesmo nunca devem ter estado juntos sequer metade deles), de Espanha e da América Latina muitos deles. Do Brasil, por exemplo, que agora me lembra, o João Ubaldo Ribeiro, Antonio Torres, Nélida Piñon, Luís Fernando Verissimo, Zuenir Ventura, o Moacir Scliar, Ivan Junqueira, António Cícero, Bernardo Carvalho, Martinho da Vila, Eucanaã Ferraz e outros mais novos, etc - e, glória maior, porque no Brasil nunca aparece, o Rubem Fonseca, e este ano a Tatiana Salem Levy e você”.
Se fui a Correntes, devo a José Carlos Vasconcelos, onipresente, o homem de vasta cultura, jornalista a vida toda, pessoa que lida há 60 anos com estas coisas de cidadania cultural, tendo recebido o Prêmio Vasco Graça Moura, pela sua “exaustiva persistência na imprensa portuguesa de ambito cultural”. Poeta, autor de Corpo de esperança, Repórter do Coração, De Poema em Riste, O Ama A mar A Povo II. Nascido em Freamunde, José Carlos acentua, “aquela é a minha terra, onde nasci, e Póvoa do Varzim é a minha terra, onde não nasci”. Sabe mais do Brasil e dos nossos meios literários que muito brasileiro bem informado. Promove nossos escritores e livros. Batalhou pela minha ida, como procura sempre incluir brasileiros em eventos portugueses. Que retribuição nosso país dá a pessoas como esta?
Semanas atrás, sendo brasileiro e afeito aos maus costumes de nossas autoridades, tive enorme surpresa. Anunciava-se que a 18a Correntes d’Escritas nesta cidade, a 20 quilômetros do Porto, seria aberta pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza. Viria? Um presidente? No Brasil, nunca em tempo algum, jamais vi um presidente aparecer em um acontecimento literário. Na abertura da Bienal de Livros de São Paulo, 2016, nosso (Nosso? De quem?) Michel Temer, preferiu não aparecer, com medo de solicitações como “retire-se”.
Então, ali estávamos e o presidente português chegou, abriu a cerimônia, sentou-se e almoçou tranquilamente com os 83 escritores convidados e as demais autoridades, entre eles ministros de estado. Ao final, sem atropelo, formou-se uma roda em torno do “homem” para uma foto. Não havia lugar para mim no circulo e o fotógrafo Daniel Mordzinski, instintivamente puxou uma cadeira e colocou-a bem na frente do doutor Marcelo. Assim fiz meu selfie presidencial. Sou o único sentado.
Quanto a Daniel, personagem singular, é conhecido no mundo como o “fotógrafo dos escritores” (jamais fotografou um autor perto de livros, estantes, em seu ambiente de trabalho ele cria situações para cada um) e circulou em Póvoa o tempo inteiro, câmera na mão. Seu livro, A Literatura na Lente de Daniel Mordzinski, lançado no Brasil pelo Sesi e que infelizmente não chegou a Póvoa, para grande frustração do autor e de todos nós, que esperávamos um lançamento animado.
As Correntes são um um tsunami literário que acontece com logística impecável, coordenada por Manuela Ribeiro e uma equipe, que tem o dom de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Entre 21 e 25 de fevereiro, o Cine Teatro Garrett superlotava de manhã à noite. Nas dez mesas, cada uma com cinco autores, criavam-se debates em torno da palavra, apoiando-se no poema de Armando Silva Carvalho, A Sombra do Mar. Minha mesa foi partihada com Eugenio Lisboa, Helia Correia( Premio Camões 2015) , Mario Claudio e Valter Hugo Mãe, com mediação de José Carlos Vasconcelos.
Memória afetiva em Povoa. Uma delas veio certa manhã, quando José Carlos Vasconcelos me conduziu por vielas de fachadas azulejadas ao prédio que tinha sido o Hotel Luzo- Brasileiro. Ele apontou para o busto de um homem de bigodes cerrados. Explicou: “Aqui entre 1873 e 1890 Camilo Castelo Branco, frequentou o Hotel Luzo-Brasileiro’. Apontou para outro edifício: “E ali, onde foi o Café Chinês, ele, apaixonado por uma bailarina espanhola, perdia no jogo tudo o que ganhava com a literatura, vivia arruinado.”
No mesmo instante me vi, a 20 mil quilômetros e a 65 anos de distância, olhando para centenas de volumes vermelhos da biblioteca municipal de Araraquara, as obras completas de Camilo, lembrando o desafio feito pelo bibliotecário Manaia a todos : quem enfrentará o autor de Amor de Perdição de cabo a rabo? A aposta foi ganha por Sergio Fenerich que a cada dois dias levava um exemplar, passava a noite lendo, de modo que em dois meses tinha atravessado todos. O professor de português, Jurandyr Gonçalves, nos contou a existência atribulada, desesperada, erótica, de Camilo, para ele personagem dostoievskiano: A vida desse homem foi escrever, escrever, sua única salvação, tormento, sonho.”.
Até hoje, ninguém esqueceu a gargalhada estentórea de João Ubaldo Ribeiro. Desta 18a Correntes trago a risada esfuziante de Inês Pedrosa, a alegria por reencontrar Almeida Faria, amizade de 40 anos, belíssimo escritor (Tomara O Conquistador tenha chegado as livrarias brasileiras), o estar com Rui Zink. Com Valter Hugo Mãe e Vasco Rosa a conversa rolou pela madrugada, embalada por uma aguardente velha dourada do Porto. Valter passou voando, ia para a Polonia no dia seguinte, homem do mundo.





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