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UM BREVE EXERCÍCIO DE CIDADANIA
Acadêmico: Bolívar Lamounier
" Dou por inegável que a atual classe política rebaixou a vida partidária brasileira a um nível sem precedentes, mesmo pelos sabidamente frouxos padrões da nossa República."



Não estará na hora de medidas que ajudem a construir um sistema político mais sério?


Embora timidamente, a reforma política parece estar retornando à agenda nacional. A questão de fundo permanece: não é a sociedade que diz aos congressistas como quer ser representada, eles é que dizem a ela como pretendem seguir se autorrepresentando. Ainda assim ou exatamente por isso , penso que seria útil a cidadania saudar o reaparecimento da questão enviando um breve exercício aos excelentíssimos senhores deputados e senadores.

Dou por inegável que a atual classe política rebaixou a vida partidária brasileira a um nível sem precedentes, mesmo pelos sabidamente frouxos padrões da nossa República.

Considere-se, por exemplo, a proliferação de siglas, que se acelerou na última eleição e parece fadada a fugir ao controle nas próximas. No momento, salvo melhor juízo, há 26 partidos representados na Câmara dos Deputados, 32 registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e outros 30, segundo consta, na fila, esperando por registro. Numa primeira aproximação, o número de siglas pode ser examinado sob duas diferentes perspectivas.

A teoria da representação proporcional recomenda um amplo pluralismo, pois se baseia no pressuposto de que as agremiações existem para dar voz a ideologias ou a interesses consistentes e preexistentes na sociedade. Além de antidemocrático, restringir-lhes o número seria disfuncional para o sistema político, pois implicaria alijar do Parlamento correntes de ideias e grupos importantes, dificultando, em vez de facilitar, o manejo dos conflitos que lavram continuamente na sociedade.

A segunda perspectiva não é necessariamente oposta à que venho de expor. Afirma que cada caso é um caso, podendo existir algum país onde as coisas se passem como foi mencionado, devendo-se, pois, aceitar a proliferação como um mal menor que a exclusão de interesses relevantes. Mas, como disse, cada caso é um caso.

No Brasil, decorridas três décadas do restabelecimento do regime civil, é forçoso reconhecer que o pluralismo partidário se transformou de fato na pilhéria prevista já ao tempo da Comissão Afonso Arinos, em 1985-1986, à qual coube a tarefa de elaborar um anteprojeto de Constituição. Neste ano da graça de 2016, todas ou quase todas as 32 siglas registradas se declaram de centro-esquerda; duas dúzias, pelo menos, são rechaçadas com o cabível sarcasmo pela maioria do eleitorado, que nelas não discerne um vestígio sequer de seriedade. Não foi por acaso que, desde 2013, a opinião pública optou por se manifestar na avenida; declarou que a praça é do povo como o céu é do condor. Engajando-se numa memorável onda de protestos, manteve todos os partidos a uma asséptica distância.

Esta é, pois, a situação: o Brasil chegou ao século 21 com um sistema político institucionalmente razoável, extremamente generoso, direi mesmo permissivo, no tocante à abrangência do sufrágio e às facilidades para a criação de partidos, mas deficiente, para não dizer fraudado e fraudulento, noutros aspectos cruciais do regime político que denominamos democracia representativa.

Acontece e aqui retomo a segunda perspectiva que nenhum regime político ou sistema de governo existe para lidar com apenas uma ou com umas poucas necessidades. Todos são multipurpose, ou seja, existem para e são de fato forçados a lidar ao mesmo tempo com numerosos objetivos e valores. Objetivos e valores nem sempre compatíveis entre si, diga-se de passagem. Eis por que, se me permitem invocar brevemente o conselheiro Acácio, governo tem de governar escolhendo os objetivos que esteja de fato disposto a implementar e ignorando ou rechaçando os que não esteja.

Pelo menos em dois momentos, portanto, a importância dos partidos políticos deve ser ressaltada. Primeiro, cumpre-lhes refletir a diferenciação subjacente de interesses e ideologias, caso ela exista, ou estabelecer balizas para que ela se constitua obviamente, dentro de limites, em se tratando de um regime democrático. Nessa função, se não querem ser cúmplices no fraudar a vontade popular, os partidos têm de ser estáveis no que toca a suas formas de organização e liderança, e doutrinariamente inteligíveis o que nem de longe significa rigidez ou fanatismo ideológico. O segundo momento, ou função, é o que pedantemente se costuma chamar de governabilidade. Assim como devem ajudar a organizar a opinião pública, os partidos devem também organizar as correntes parlamentares, incutindo nelas a altivez necessária para defender a instituição legislativa, mas também flexibilidade para colaborar com o Executivo no que este tiver de sério a propor.

Isto posto, volto à ideia de enviar aos nossos representantes um breve exercício de cidadania. Não incluiria nele os cidadãos sinceramente satisfeitos com a situação atual: os que se sentem bem servidos com o funcionamento atual da representação proporcional e do pluripartidarismo. Aos insatisfeitos e aos que se encontram em dúvida, eu proporia algumas indagações. Dada a complexidade do tema, limitaria minha enquete a detentores de diplomas universitários em nível de pós-graduação.

Primeira indagação: indique os nomes de metade (16) das 32 siglas registradas. Segunda: descreva (genericamente...) as ideologias ou os interesses que as referidas 16 se propõem a representar. Terceira: as principais lideranças de cada uma.

Meu teste nada tem de malicioso. Se a razão de termos 32 siglas registradas e outras tantas na linha de montagem é a necessidade de dar voz a ideologias, interesses ou projetos consistentes, parece-me razoável indagar se pelo menos a faixa mais escolarizada do País as conhece. Caso contrário, não estará na hora de adotarmos cláusulas legais fortemente redutoras, que nos ajudem a construir um sistema político mais sério?

Por: Bolívar Lamounier (fonte: Estado de S. Paulo) | Data: 31/07/2016.



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