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PEDAÇO DE MIM
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Eu disse sobre o milagre da transformação da dor em saudade. E lembrei-me novamente da canção. Da força da imagem da mãe que arruma o quarto do filho que já morreu. A saudade vai ocupando as tais lacunas. E, aos poucos, ela vai colorindo um outro quadro".


Um filho morreu e uma mãe chora a necessária dor. Sim, necessária. Não há o que dizer para essa mulher que seja capaz de aliviar o susto, a ausência, a dor lancinante que a toma desprevenida. O filho estava bem. Foi viajar, apenas. Foi e não voltou. Um descuido. Quem sabe? Um caminhão encerrou um destino.
Ouvi o relato da mãe. O doloroso relato. Fui até ela. Abracei-a sem pressa. Disse pouco. Ouvi mais. Ela falou sobre a minha mãe que também perdeu filhos. Dois. Dois irmãos meus morreram na juventude. Ouvi. Não achei que era momento de falar sobre as minhas perdas ou sobre as cicatrizes que há em mim desenhando a saudade dos meus irmãos. O momento de dor era dela. Lembrei-me da canção de Chico Buarque de Holanda.

"Saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu".

Disse-me a mãe que não conseguiria arrumar o quarto do filho. Seria demais. Remexer em bilhetes que estariam ali. Em documentos. Em pertences que dão vida a um quarto. Em roupas que lembrarão momentos. Festas que não voltarão a acontecer. Abraços que se ausentarão. O filho morreu. A dor não. Ela vive e quem sabe o dia que ela deixará de ocupar aquele cômodo?
A mulher tem fé. Disse que sabe que o filho não acabou. O filho vive no Amor, agora. Mas o beijo acabou. O encontro acabou. A rotina tão boa acabou.
Prossegue com sua indignação justa. "Não é certo", diz ela. "É a inversão da lógica da vida. Os filhos enterram os pais e não o contrário. Eu não estava preparada para isso". Que mãe está preparada para perder o filho? Mas não importa. O que importa é permanecer ali. Dizendo pouco, apenas o necessário para fazer nascer alguma esperança.

Haverá outros amanheceres, certamente. O tempo haverá de conversar seriamente com a dor e solicitar a ela que não preencha todas as lacunas da alma. Que parta aos poucos sem partir o que fica. É preciso respirar. De hoje, essa mãe não tem condições de avistar o amanhã. Mas ele virá.
Falou novamente da minha mãe. Quis saber como ela se recuperou. Eu disse sobre o milagre da transformação da dor em saudade. E lembrei-me novamente da canção. Da força da imagem da mãe que arruma o quarto do filho que já morreu.
A saudade vai ocupando as tais lacunas. E, aos poucos, ela vai colorindo um outro quadro. Bonito. Hoje, dói pensar no filho e como é impossível não pensar, apenas a dor existe. Chegará um amanhã em que a lembrança será capaz, inclusive, de roubar algum sorriso, de tempos de brincadeiras bonitas entre mãe e filho.
Mostrou-me o celular. Nas chamadas, lá distante, havia uma do filho. Não haverá mais. Até isso dói. "Um pedaço de mim se foi", ela balbuciou entre lágrimas. Eu concordei. E delicadamente falei do poder de reconstrução. No inverno, não somos capazes de imaginar que, um dia, amanheceremos com uma paisagem completamente diferente. As árvores secas voltarão a florir. A morte é a primavera da alma.
Voltei para casa pensando nos problemas que criamos desnecessariamente. Nas vidas que complicamos. Nas relações que permitimos serem doentias. Tempos de desperdícios. Chorar por um filho que se foi não é um desperdício, é um humano jeito de dizer a Deus: "Essa perda para mim foi demais."
Vou visitá-la de novo, certamente. É o meu humano jeito de obedecer a Deus, amando quem mais precisa de amor.
Por: Gabriel Chalita (fonte: Diário de S. Paulo) | Data: 10/04/2016.




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