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BEIJO DE MÃE
Acadêmico: Gabriel Chalita
O beijo da mãe de Francisco me fez sentir saudade do beijo da minha mãe, que visito menos do que gostaria pelo excesso de fazeres.

Beijo de mãe

Trabalho em uma UTI neonatal, há alguns anos, e nunca vi o que vi com Francisco. 

Sou fisioterapeuta e minha mulher é enfermeira. A saúde nos uniu. Dias antes dos dias que nos trouxeram Francisco, minha mulher dizia em pausas. Há cansaços quando cuidamos de vidas que podem não prosseguir. Inda mais recém-nascidos. 

Vou economizar os termos técnicos para dizer do que houve. 

O que houve foi que, depois de tentar reanimar Francisco por alguns bons minutos, os médicos compreenderam que nada mais tinham a fazer. Os olhares sempre são de tristeza. Uma mulher vai à maternidade para sair com o filho no colo e iniciar um novo tempo em sua vida. Nasce uma criança, nasce uma mãe. 

Um médico foi comunicar à mãe de Francisco que ele não havia sobrevivido. Nasceu prematuro, nasceu como nasceu um outro filho da mãe de Francisco, há alguns anos, e não sobreviveu. De complicações semelhantes.
 
A expressão de dor da mãe de Francisco dialogava com a serenidade de quem sabe que o que tinha que ser feito foi feito. Sem culpar a ninguém, perguntou se podia beijar o filho, agora, sem vida. O médico disse que sim. Que tivesse o tempo que quisesse com ele. 

Chorei novamente como chorei da outra vez quando a mãe nasceu e pouco tempo depois morreu. 

Ela entrou onde estava Francisco. Com o respirador já retirado. O corpo estendido na pequena cama. Ele menor ainda. Ela nem se diga. 

O beijo de mãe é um beijo selador de vida. E ela beijou o filho. E disse que o filho estava respirando. Os médicos que observavam podiam ter desacreditado, coisa de mãe, sonho de mãe. Um deles foi ver. O menino dado como morto não estava morto. O corpo tão frágil fazia sutis movimentos. Voltaram com o respirador. Voltaram com o tratamento. Rasgaram o óbito e algumas certezas dos estudos. 

Foi apenas um desmaio prolongado? Foi uma interrupção? Uma pausa que aguardava um beijo, um beijo de mãe? Sou um homem da ciência, mas não duvido da fé. O corpo estava sem vida. Eu vi. Demorou um tempo da tentativa de reanimação para que os dois médicos atestassem o fim. 

E, então, o beijo de mãe. 

Francisco ficou algum tempo ainda na UTI. Faz pouco tempo que está com a mãe em casa. Minha mulher que queria deixar de fazer o que faz tão bem resolveu ficar. 

Eu sou muito grato por exercer a profissão que exerço. Por cuidar dos movimentos. Por reabilitar. Por aliviar as dores. Por ajudar no caminho do caminhar. Ouço semelhante dizer da minha esposa, como enfermeira. 

Feitos extraordinários como o de Francisco nos ajudam a lembrar que é no ordinário dos nossos dias que nos realizamos ou nos desperdiçamos. Não há felicidade maior do que fazer maior a vida do outro que cruza o nosso caminho. 

O beijo da mãe de Francisco me fez sentir saudade do beijo da minha mãe, que visito menos do que gostaria pelo excesso de fazeres.

No dia seguinte, fomos à sua casa, eu contei a ela do acontecido. Ela, que é uma mulher de muita fé, disse: "Nunca deixe de acreditar, filho: Deus nos deu a inteligência para inventarmos a ciência, mas deu mais ...". E fez uma pausa. E eu esperei. Esperar é um aprendizado. Prosseguiu ela: "O amor se manifesta em flores desabrochando, em dias nascendo, em beijo de mãe fazendo nascermos com eles".

Beijei minha mãe para prosseguir nascendo, para prosseguir acreditando em outros nascimentos. 

A cidade que moro não é muito grande. Tenho a certeza de que vou ver Francisco caminhando por aqui.

Publicado em O Dia, em 09 11 2025



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