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![]() Acadêmico: Gabriel Chalita O que sinto é que nada é mais lindo no dia ou na noite do que os sentimentos. É o que somos. É o que permanece.
Se eu soubesse antes Era um velório. E eu estava com a intenção de aliviar alguma dor, se é que é possível, de uma grande amiga. Amizade, para mim, é um encontro de almas, um encontro capaz de silenciar o mundo para apreciar a melodia que duas vidas são capazes de compor quando estão. Como é bonito imaginar que, no imponderável da vida, dois olhares se reconhecem e passam a caminhar, próximos ou distantes, de mãos dadas. Aliviar a dor da morte de mãe, talvez, não seja, de fato, possível. Minha mãe já foi sorrir a eternidade há algum tempo. A orfandade é um sofrimento doído que nos faz sonhar com o colo que não mais temos. Apesar da dor, minha amiga estava serena. E recebia com gratidão os abraços e alguns dizeres. Acompanhar a despedida é um compromisso humano de grande significado. Assim como fazemos nas chegadas. Nos sorrisos distribuídos na nova vida que se inaugura. Na vida que nasce entre choros. Na vida que morre em silêncio. A irmã de minha amiga chegou sem silêncios. Gritava ditos de desespero. De incompreensão da morte da mãe. De alguma acusação aos médicos displicentes. Minha amiga olhava para a irmã sem vontade de qualquer reação. Não há a tal melodia da amizade entre elas. Depois da cena, foi ao encontro da irmã e ofereceu um abraço sem abraço. E uma cobrança de que não sabia que estava tão mal. Foi quando ela resolveu ter comigo alguma conversa: "Se eu soubesse antes, eu teria feito tanta coisa". Eu quis entender. "Se eu soubesse antes que ela iria morrer?" Fiquei conversando para dentro. Perguntando, a mim mesmo, perguntas que fazem pensar. Sabemos todos que todos vamos morrer. Que pode ser antes ou depois. A duração da vida não segue a obediência dos dias. Podemos morrer no anoitecer ou antes. Podemos ter algum aviso, alguma doença que faz com que os dias sejam de alguma preparação. Ou podemos simplesmente partir. Por razões tantas. Sem razão nenhuma. E cedo demais, muitas vezes. "Seu eu soubesse antes" é uma fala que não fala a vida. Sabemos antes. Sabemos desde que começamos a saber. É que nos distraímos. Nos desviamos do que nos une ao sagrado. As relações são sagradas. Chorei a vida depois que deixei o corpo sem vida da minha mãe no cemitério onde tantos que amei descansam. É assim que dizemos. Descansaram. Não sei se é a melhor palavra. Gosto do sorrir a eternidade. Do viver o mistério. Do experimentar o sagrado da existência. Embora possamos experimentar, aqui também, o sagrado. E fazemos isso sempre que compreendemos que um dia acaba. Sim. Chorei e choro minha mãe, meu pai, meus irmãos. Mas eu sabia antes. Mesmo o que se foi de acidente, tão jovem. Sabia antes que um dia anoitece. E que o anoitecer da gente é diferente do anoitecer do dia. E, por isso, disse amor podendo ou não ser de despedida. Minha amiga comentou alguma coisa sobre a irmã que ouvi cortado. Cortaram as relações há algum tempo. E, há muito, ela não falava com a mãe. O choro do remorso é diferente do choro da saudade. Não quero julgar, alimentar culpa, decidir decisões dos outros. Só quero lembrar que a fala "se eu soubesse antes" é ensinadora. Se sabemos da noite, o que deveríamos fazer durante o dia? Se o fim nos une, o que fazemos antes do fim para nos unirmos? Na despedida da minha mãe, pude dizer tanto. Pude lembrar tanto. E estávamos de mãos dadas, quando o silêncio disse que sua vida era vida onde eu não podia compreender. Só sentir. O que sinto é que nada é mais lindo no dia ou na noite do que os sentimentos. É o que somos. É o que permanece. Publicado em O Dia, em 02 11 2025 voltar
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