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![]() Acadêmico: José Renato Nalini A rudeza de Silvio Romero não o impedia de ser justo. Um examinando seu, na arguição oral, com a suficiência própria dos moços, quase raiou pela descortesia. O crítico, homem de briga, reagiu com azedume. Mas, ao atribuir o conceito ao aluno, aprovou-o sem relutância
A régua de Romero O crítico Silvio Romero, cáustico em seus julgamentos, utilizava-se de uma régua própria. Nem sempre coincidente com a medida convencional, de que se servia a maioria. Assim é que numa tarde, encontrou-se ele com Coelho Neto e logo foi dizendo o motivo pelo qual estava profundamente irritado: - “Agora mesmo fui obrigado a dizer quatro verdades a um burro que se diz admirador de Hegel, ali na Livraria Garnier. Hegel, uma das maiores cavalgaduras da filosofia alemã, encontrou no Brasil outra cavalgadura, que o põe nas nuvens. Destemperei com o asno. E a discussão foi tremenda. Sabe você quem é Hegel? Uma besta! Uma rematada besta, resultante deste conúbio danado: Kant, Fichte e Schelling! E o burro que admira essa azêmola ainda queria impingir-me, como grandes gênios, o Schopenhauer, o Bergson, o Emerson e o Nietzsche, outro lote de descompassadas zebras! Pois não me contive: arrasei-o, como era de meu dever!”. Simultaneamente, prodigalizava encômios a seus discípulos. Pois no exato momento em que tecia tais considerações, vê passar um jovem seu discípulo. Chamou-o logo: - “Vem cá!”. E apresentando-o a Coelho Neto: - “Veja bem este menino, assim simples e modesto. Pois é um gênio, amigo! Um verdadeiro gênio!”. sso porque ao lecionar, não considerava o aluno a tabula rasa, a massa informe que lhe cabia moldar, mas o se pensante, capaz de trava com o mestre os debates mais vivos, no clima fecundo do diálogo das ideias. Um dia, na Faculdade de Direito, sentiu-se indisposto. Dirigiu-se aos alunos: - “Não dou aula hoje. Estou muito burro para falar e vocês ainda mais burros para me compreenderem!”. Sua excentricidade era legendária. Quando integrava Bancas Examinadoras, todos gostavam de assistir à arguição, pois tinha rasgos originais que faziam sua fama. Ao examinar um aluno, viu que seu nome de família era Correia. Em vez de formular questões, indagou: - “É parente de Raimundo Correia?”. Ante a resposta afirmativa, determinou: - “Pois então recite “As Pombas”. Por coincidência, ou por sorte, o aluno sabia de cor o famoso soneto e pode declamar seus catorze versos. Ao fim do soneto, Silvio Romero aplaudiu e exclamou: - “Pode ir! Está aprovado!”. O crítico severo, rigorosíssimo, era um sentimental. Ao surgirem os primeiros versos de Cruz e Sousa, tão estranhos pareciam a Silvio Romero que ele não perdoou o jovem poeta. Não poderia aceitar lances como este: “Cróton selvagem, tinhorão lascivo/ Planta mortal, carnívora, sangrenta/ Da tua carne báquica rebenta/ A vermelha explosão de um sangue vivo”. Repudiou, com chibata verbal e ferina, a novidade. Era o ímpeto combativo e audaz de seu temperamento. Foi procurado pouco depois por Nestor Victor, jovem crítico paranaense e amigo de Cruz e Sousa. - “O senhor foi muito severo com o poeta. É poeta pobre, modesto funcionário da Estrada de Ferro. Negro, tuberculoso, desprezado por causa da cor...” Silvio ficou comovido. - “Você poderia ler alguma coisa de seu livro outra vez?”. Após alguns minutos, interrompeu a leitura: - “Sabe que não é assim tão mau... Lei mais um pouco...” Nestor Victor volveu à leitura, pausadamente, emocionadamente. Caprichou ao extrair efeitos do verso adequadamente declamado. Até que Silvio Romero concluiu: “Ele é mesmo preto e tuberculoso? Mas então é um grande poeta!” A rudeza de Silvio Romero não o impedia de ser justo. Um examinando seu, na arguição oral, com a suficiência própria dos moços, quase raiou pela descortesia. O crítico, homem de briga, reagiu com azedume. Mas, ao atribuir o conceito ao aluno, aprovou-o sem relutância. - “Foi insolente. Não há dúvida de que foi insolente. Mas provou que tem talento. Meu dever era ser justo!”. O sentimento de Justiça era enfaticamente evidenciado quando ele defendia Tobias Barreto. Se alguém ensaiasse restrições a Tobias, Silvio saía prontamente, com a impetuosidade de seu feitio, a defender o amigo morto. - “Agridam-me, mas a Tobias não consinto. É uma injustiça. É o desconhecimento dos serviços relevantíssimos que ele prestou à nossa mentalidade”. Muitas de suas polêmicas resultaram dessa defesa. Sobretudo o livro em que, a pretexto de estudar Machado de Assis, nada mais foi do que a exaltação de Tobias Barreto. Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 23 10 2025 voltar
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