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NA MINHA INFÂNCIA
Acadêmico: Gabriel Chalita
Na minha infância mora Angélica, a professora. Moram os seus gestos, a sua voz pronunciadora de palavras novas, o seu ouvir, o seu olhar.

Na minha infância

Eu agradeci os dizeres de amor no dia do professor. Recebi mensagens de alunos que viveram tempos comigo. Perscrutamos saberes e sentimentos. E celebramos a aprendizagem. 

Ser professor é ampliar o território dos afetos para que vidas desabrochem. É silenciar os barulhos que impedem o ser de ser. É ter os cuidados que merecem as vidas em formação. É formar para o mundo, para o mundo grande, as sementes, mesmo as ainda medrosas de brotar. Serão árvores, serão voo, serão a profundidade dos mergulhos intensos no tema da vida. Serão o que quiserem se as quisermos educar. 

A liberdade é o tema que resume o bom do existir. A liberdade é caprichosa, entretanto. Exige saber. Sabem os pássaros, desde os inícios, as asas que têm. Sabem a agilidade, os animais que rasgam a terra em velocidade. Ou os que nadam os oceanos e os rios. Sabem o alimento e a vida que se repete como a realização do que são. Não escolhem eles. Escolhemos nós. 

A liberdade é o tema que resume, também, a educação.  Nascidos sem saber, vamos de choro em choro, de engatinhar em engatinhar, nos levantando. Do leite materno ao alimento que escolhemos no mundo. 

E quem nos prepara para preparar as nossas escolhas?

Na minha infância mora Angélica, a professora. Moram os seus gestos, a sua voz pronunciadora de palavras novas, o seu ouvir, o seu olhar.

Era uma cidade pequena, uma escola pequena, uma vida grande pedindo para nascer. Éramos grávidos, todos nós, seus alunos, de futuro. Nas sextas, que despediam os outros dias da semana, ela tocava violão e cantava. E cantávamos com ela. Ela explicava as letras que envelopavam de sentido as músicas. Parava em algumas palavras para dizer o bonito delas. Em frases feitas de palavras pelos poetas da canção. 

Foi assim que fui conhecendo o ritmo dos dizeres e me apaixonando por dizer. Angélica morava perto da escola. Usava óculos que a faziam nos enxergar. Usávamos os óculos do que aprendíamos para enxergarmos um mundo novo. Como não viemos prontos, nos aprontávamos todos os dias para a liberdade.

Gosto de lembrar do espanto de Angélica, a professora, diante de um verso de uma canção. De repetir o dizer, mais de uma vez, para que nos espantássemos com ela. "Como é linda a língua portuguesa", dizia ela. "Como é linda a poesia e a profissão do poeta", completava.  E eu sussurrava, "e da professora, também". 

Poderia ter dito alto, não disse, era pequeno demais para oferecer palavras de amor. Ou não. Ou talvez fosse a timidez dos inícios. Disse depois. rendi homenagens à Angélica quando já era professor. Choramos juntos as lembranças. 

Ela, humilde, dizia que eu via grandeza onde não havia. Eu discordava. Fui dizendo, então, versos de canções que ela cantava tantos anos depois. E ela desacreditava de eu ter, em mim, todas aquelas lembranças. Até da carteira, perto da janela, onde eu sentava, me lembro. 

Lembro do armário onde ela guardava o violão e as folhas com as letras das músicas copiadas em mimeógrafos. E lembro do cheiro daquele papel. Quantos papéis eu já desempenhei nas escolhas que fiz na vida.

No caminho para casa, eu gostava de ir ao seu lado, caminhando, ouvindo sobre o passado que a ensinou. Os passados são ensinadores, moram em nós, oferecem aconchegos quando o presente é grande demais e o futuro nos teima em antecipar alguns medos. 

Angélica tinha a linguagem da música, "temos todos", ela dizia. A música é a assinatura do Artista ao contemplar sua obra. Depois de tudo feito. Depois de tudo feito semente porque o mundo continua sendo feito, o Artista escreveu a música. Na natureza, nos sons dos riachos, no cantar dos que cantam, no barulhar dos que barulham, no silêncio do dia que se despede. E no amanhecer. 

Como gosto do amanhecer. É como se a liberdade fizesse um convite, "e hoje, viveremos"?

Angélica, depois de aposentada, dava aulas de música e de textos. Ela gostava dos meus textos, Dizia que tinham alguma tristeza. E tinham mesmo. As crianças vão palmilhando o mundo, também, na tristeza. E dizia que tinha a alegria de quem queria ser. 

As nascentes querem ser cachoeira. A cachoeira em que nasci é grande em mim. 
Por isso escrevo. Por isso entro em uma sala de aula e agradeço. Na minha infância, mora Angélica e moram tempos que nunca passaram, que nunca passarão.

Publicado em O Dia, em 19 10 2025



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