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FOLHETIM SEM PSICOLOGIA
Acadêmico: José Renato Nalini
Quem se detiver a recordar a epopeia de outros intelectuais que se devotaram às letras, constatará – sem qualquer esforço – que só encontraram dificuldades no seu mister. Tiveram de lutar para manter um padrão de mínima dignidade

Folhetim sem psicologia

Sobreviver só com a escrita é algo praticamente impossível numa pátria que perde leitores. Nunca foi muito diferente. Lembro-me da imperecível Lygia Fagundes Telles, com quem tive o privilégio de conviver durante algumas décadas, reclamar dos míseros direitos autorais que recebia. E era a maior romancista brasileira, tantas vezes cotada para merecer o Nobel de Literatura que ainda não veio para esta nação de mais de duzentos e quinze milhões de habitantes.

Quem se detiver a recordar a epopeia de outros intelectuais que se devotaram às letras, constatará – sem qualquer esforço – que só encontraram dificuldades no seu mister. Tiveram de lutar para manter um padrão de mínima dignidade. Passaram por situações dramáticas por falta de dinheiro.

Nomes que deveriam estar no Panteão da Literatura Brasílica enfrentaram percalços que autores clássicos de países mais adiantados considerariam enredo ficcional. Mas é o que acontecia e ainda acontece neste solo.

Coelho Neto era um desses escritores sempre às voltas com finanças exíguas. Foi procurar trabalho na “Gazeta de Notícias”, então dirigida por Ferreira de Araújo. Logo foi dissuadido. Ali não havia nada que ele pudesse fazer. Além disso, o problema era substituir o autor dos “folhetins” que, muito apreciados pelos leitores, aumentava a venda de exemplares avulsos.

- “Seus problemas acabaram! Eu faço o folhetim!”.

Depois de um instante de silêncio, Ferreira de Araújo retrucou:

- “Tens muitas psicologias... E um folhetim tem de ser principalmente ação e intriga, para despertar a atenção e o interesse do público do jornal”.

Mas Coelho Neto não desistia. Enxergava ali a chance de poder pagar seu aluguel e alimentação. - “Se é assim que desejas, será feita a tua vontade. Farei o folhetim sem psicologias!”.

Ferreira de Araújo conhecia o estilo do amigo. Hesitava, titubeava, não se decidiu. Demorou a pensar. Pediu tempo para resolver.

Resolvido a agarrar a chance, Coelho Neto contou sua real situação. Embora já fosse conhecido pelo seu “Inverno em flor”, a vida não estava fácil. Aceitava qualquer oferta, desde que recebesse um mínimo em moeda. Dispunha-se até a receber pagamento em espécie.

Ferreira de Araújo comoveu-se. Resolveu contratar o amigo.

- “Queres mesmo fazer o folhetim?”.

- “Faço! Fique tranquilo!”.

- “Então já me arranje um bom título!”.

- “Serve “O Príncipe Encantado?”

- “Não. Cheira a coisa velha. Arranja outro!”.

- “Já encontrei: “O Rajá de Pendjab!”

- “Ótimo! Preciso do primeiro texto para amanhã!”.

- “Deixa comigo!”

E saiu saltitante da “Gazeta de Notícias”.

Pense-se que, àquela época, a maior parte dos jornais era abastecida com manuscritos e sua composição era com tipos metálicos escolhidos um a um pelos linotipistas. Algo que as gerações atuais não conseguem imaginar.

No dia seguinte, com chamada na primeira página, a “Gazeta de Notícias” anunciava o próximo folhetim, da autoria de um “romancista francês”. E publicava o retrato de um idoso com grandes barbas. Era a cabeça do velho Humphreys, autor de uma famosa “Maravilha Curativa”, um desses remédios milagrosos que se vendia bastante naquele tempo.

Coelho Neto conseguiu se manter durante aquele período, inventando tramas e conquistando leitores, enquanto continuava a escrever sua obra. O maranhense Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em Caxias, no Maranhão, em 1864 e morreu no Rio de Janeiro em 1934.

Foi o fundador da Cadeira número 2 da Academia Brasileira de Letras e considerado “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em votação realizada em 1928 pela revista “O Malho”.

Em seu gabinete de trabalho, havia um busto em bronze de Eça de Queiroz e outra de Camilo Castelo Branco, os dois escritores lusos que mais admirava. Ao conversar com Humberto de Campos, que indagava sua preferência, Coelho Neto respondeu:

- “Cada vez me apaixono mais pelo estudo da língua. E, especialmente, da língua em Camilo!”.

Para marcar o limite de seu culto aos romancistas que nos legaram “A Cidade e as Serras” e “A brasileira de Prazins”, exclamava, em êxtase:

- “O Eça tem a minha admiração. Camilo é a minha religião!”.

Esse talentoso devoto da “última flor do Lácio” escreveu folhetins para não passar fome. Coisas de um Brasil onde a literatura é para heróis e nefelibatas.

Publicado no Blog do Fausto Macedo, em 10 10 2025



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