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SOBRE DESVIVER
Acadêmico: Gabriel Chalita
Tristes daqueles que desconsideram que o afeto pode andar de mãos dadas com a ciência.

Sobre Desviver

Eu não quero pensar nisso, eu não quero dizer isso, eu não quero ter a ilusão da liberdade de viver do antes, de desviver o vivido do hoje.

Eu sou mãe. De um único filho. Sou mãe por opção. Ele não veio de alguma distração. Eu soube da vida sendo criança em mim alguns meses depois de ter decidido não continuar. Eu era jovem demais para amar sem amor. E sem delicadezas. Eu talvez tenha errado em não dizer. Mudei de cidade. Mudei de vida. Arrumei em mim um espaço enorme para amar meu filho.

Meu filho nasceu. Nasceu como nascem os filhos. Com os choros. Com a dependência total. Quem somos nós, os humanos, sem o cuidado?

Cuidei. Eu juro que cuidei desde sempre. Tive ajuda. Minha mãe cansou de insistir que o pai tinha o direito de saber. Errei? Não sei. Talvez, sim. Quem decide o erro? Fiei-me numa frase dele de que o mundo tinha gente demais para se fazer filhos.

Eu nunca disse. Talvez se o tivesse encontrado teria dito. Não sei. Tive medo da rejeição. A rejeição é uma das mais dolorosas experiências do humano existir. E há outra informação, ele tinha outra. Eu era um brinquedo, talvez, tão menina, tão apaixonada, tão entregue àquele corpo que eu queria mais do que tudo. Quando eu disse que mudaria para longe, ele se fez longe. Eu disse da faculdade que eu queria fazer. Ele disse nada. Eu disse que era melhor nos despedirmos. Ele disse nada novamente.

E eu saí. E chorei a vida inteira naquele dia. E nunca mais nos vimos. E, então, eu soube da vida nascendo em mim. E uma alegria tomou conta dos meus dias. Não era mais por ele, por ser uma semente dele em mim. Era por mim. Era por querer ser mãe.

Quando meu filho nasceu, minha mãe ainda não morava comigo. Eu tive amigas. Eu tive uma médica que quase me adotou. Tristes daqueles que desconsideram que o afeto pode andar de mãos dadas com a ciência.

Decidi dedicar minha vida à ciência. Fiz a mim promessas de grandezas no tema da vida. Escrevi teses, livros, viajei mundos. Finquei bandeiras. Não me casei. E fui, na medida do que consegui, mãe em tempo integral, mesmo distante.

E esse distante que, agora, é o meu incômodo. Meu filho já tem um filho e desconhece o bonito da paternidade. Brigamos muito por isso. Ele diz que eu sou impertinente. A mãe da criança cobra o meu filho. Eu resolvo as questões financeiras. Ele diz que a decisão da criança foi dela, que ele nunca quis ser pai.

Essa frase me corta como um punhal que rasga o tempo e me faz voltar à menina que um dia eu fui. De uma paixão sem correspondências. Como eu disse, eu era um brinquedo, apenas. Meu neto precisa de um pai, é o que eu decidi e não sei se estou errada.

Meu filho não teve um pai. Será isso o seu desleixo com o amor? Ontem mesmo, ele disse que a minha carreira é o que há de mais importante na minha vida. Olhei para ele com raiva. Eu fiz de tudo para que ele tivesse tudo. O que é o tudo?

Há um outro assunto que dói em mim. Ele se perde na vida. Ele acredita que viver é uma diversão. E eu, com culpa, pago os seus desvios. A nova namorada tem a idade que eu tinha quando sofri a partida. Ela é tão apaixonada por ele. E ele diz, entre um brigar e uma verdade estranha, que a relação está chegando ao prazo de validade.

A mãe do filho ainda sofre por ele. Estranho sentimento de se alimentar do desejo do outro. Dei e dou a ele um luxo que demorei muito para conquistar. Tudo para ele é pouco. Desgosta dos pratos em restaurantes sofisticados. Exige marcas de roupas. Eu acho de um tremendo mau gosto exibi-las. Mas dou. Dou para não criar embaraços. Eu sei que estou errada. Mas tenho tanto a fazer no trabalho que discussões desnecessárias me entojam.

Educar um filho não é uma discussão desnecessária. Eu sei. E não sei. Se soubesse mesmo, eu faria diferente. Tive vontade de procurar pelo seu pai. Só para saber. Saber o quê? Nem sei se está vivo. Se o visse, o que diria?

Amanhã viajo para uma turnê de palestras. Viajo em pedaços. O que me ameniza é saber que ele não é perverso. Ou talvez seja e eu não queria ver. Se eu pudesse desviver, eu farei diferente. Eu não quero dizer isso. É claro que ser mãe sempre foi um sonho. Os sonhos mudam tanto, não é?

Se eu pudesse desviver, talvez eu tivesse dito ao pai. Ou talvez não tivesse dito, mas tivesse sido mais presente. Eu fui presente. É que as coisas foram acontecendo na minha vida. E a cada escolha, uma renúncia. É assim que é. Até para dar a vida de luxo para o meu filho, eu precisei fazer voos mais longos. Ele nunca ficou sozinho. Ficou sem mim, apenas.

Nas vezes que perguntou sobre o pai, eu disse que era melhor não saber. E ele nunca soube. E nunca soube, nem sei se sou uma boa mãe. Se eu pudesse desviver, eu ainda não sei... o que sei é que não posso. Alguma coisa eu posso fazer. Quando eu voltar dessa viagem, eu vou fazer. Enquanto estamos aqui, podemos fazer.

Publicado em O Dia, em 28 09 2025



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