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![]() Acadêmico: Gabriel Chalita Viajo no tempo em que fui plantado. Sou um pouco do que meu avô sonhou? Quem sabe... o que sei é que sem sonho somos nada.
O livro azul Meu avô foi alfabetizado no comércio. No mesmo balcão em que tecidos eram abertos, apresentados, cortados para os que compravam. Eram outros tempos. Tempos diferentes dos nossos em que desaprendemos o tempo e o espaço do trabalho. De tudo, talvez. Nas mãos de meu avô, as folhas de embrulho e o desenhar das letras com lápis bem apontados. Nas mãos de hoje, o trabalho não tem tempo de terminar. E o espaço é todo lugar. Saímos sem sair. Ficamos sem ficar. Meu avô fechava a loja e caminhava para casa. Em casa, eram os filhos e a mulher. E o anoitecer silencioso do interior. Os interiores hoje não desligam. Há um ininterrupto olhar para uma luz que não é a luz do amanhecer. De um buscar que não é um buscar das frutas do pomar ou das verduras que verdejavam nas hortas plantadas pelos meus avôs. Lembro-me, com certa lembrança do sagrado, de um livro azul escrito com as letras do meu avô. E me lembro de minha avó dizendo dos segredos que ali estavam depositados. A cada filho, uma crônica de amor, um dizer de esperança sobre o amanhã. Era como se ele desenhasse com as letras do tempo o que ele esperava do tempo. E do espaço do existir de cada filho. Ele não lia para ninguém o seu pequeno tratado de amor. Minha avó contava que ele primeiro fazia uma longa oração e, depois, ficava a sós com o caderno e começava por dizer o nome e, depois, o significado do nome escolhido e, depois, a escolha que ele fazia para o amanhã daquele filho. Ele nunca lia para ninguém, como disse, e não lia porque não queria que fosse ele a decidir a vida do filho. O texto era apenas uma oração. Para que o filho não se perdesse no mundo grande. Para que os espaços fossem espaços de valor. Para que a vida caminhasse para o alto. Os filhos cresceram e tiveram os filhos. Para cada neto, o tempo do silêncio e da escrita. E meu avô nos escrevia o seu sonho para o nosso futuro. Eu, ainda menino, mas já amante da palavra, quis muito ler aquele livro. Eles não deixaram. Mesmo depois da morte do meu avô, minha avó desautorizou o acesso. A explicação era que ninguém pode decidir a vida de ninguém. O livro era um sonho, apenas. Os sonhos estão sempre autorizados. Os sonhos sopram na vida esperanças de colheitas. Meu avô ao escrever escrevia para ele mesmo. Para que ele fizesse o certo no seu espaço de pai, primeiro, e de avô, depois. Lembro-me de um velho conhecido dele na tentativa de aborrecimento sobre o tempo que ele gastava em seus silêncios e na implicância do por que Deus precisava de tanta oração. Meu avô prosseguia, sem desperdício de dizeres, "a oração é para mim, Deus já é bom, eu é que preciso ser melhor". O melhor foi ter um avô como o meu. Os seus cortes certeiros nos tecidos da loja, o seu caminhar no tempo certificando-se de ser atento, o seu abraçar livre a cada nova vida nascida na sua família. Ontem mesmo, uma mãe grávida, que amo muito, me disse do filho. "Será menino, sonho que ele seja bom". Eu disse do livro azul, dos escritos do meu avô, do não lido para que cada um se construísse a si mesmo. Quando minha avó morreu, eu tentei encontrar o livro. Minha mãe também queria. E meus tios. E meus primos. O livro azul se foi com eles. Ficou conosco a singeleza daquele gesto. O escrever sonhando. Um dia ainda escrevo um livro com os sonhos que eu imagino que sonhavam o meu avô. Um dia ainda escrevo sobre os erros do tempo sem tempo, do espaço sem espaço dos nossos tempos ou do roubo deles. No espaço deste escrever, viajo no tempo em que fui plantado. Sou um pouco do que meu avô sonhou? Quem sabe... o que sei é que sem sonho somos nada. Publicado em O Dia, em 14 09 2025 ![]() ![]() |
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