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DISPUTA INGLÓRIA
Acadêmico: José Renato Nalini
Uma tarefa restrita a raríssimas pessoas é a de resgatar o bom tom, a fidalguia no trato, a beleza das frases, a escolha de verbetes polidos, para trazer um pouco de harmonia que as redes sociais majoritariamente debilitaram nos últimos tempos

Disputa inglória

Hoje não se pode falar mais em gordo, gordura, ou usar impunemente qualquer verbete alusivo à dimensão e consistência de um corpo humano. Mas a questão da obesidade sempre esteve na preocupação dos racionais.

Oliveira Lima, escritor e diplomata brasileiro de grande participação na História do Brasil, na verdade Manoel de Oliveira Lima (Recife-1867-Washington-1928), era um atormentado por causa de sua tonelagem. Escreveu, em página de reminiscências, que a gordura era o seu ponto vulnerável. Fazendo pilhéria, afirmou que a pança havia sido o seu “calcanhar de Aquiles”.

Se isso o incomodava, foi bem observado por aqueles que gostam de espicaçar as pessoas, principalmente quando estas têm alguma importância no cenário social. A zombaria alheia o não deixou em paz. Sempre que alguém queria feri-lo, não escolhia outro assunto. Como lembra Josué Montello, no saboroso “Pequeno Anedotário da Academia Brasileira”, “em verso e prosa, as banhas do escritor pagavam por sua conduta polêmica. A caricatura, por sua vez, apoderou-se dessa gordura que a ele parecia excessiva e fez de seu corpanzil alvo de riso e de infinitas piadas.

As coisas tomaram vulto, porque ele acusava os golpes. Tanto que, além da imprensa, a constância do deboche surgiu em outros ambientes. O teatro, antigamente, era um veiculador de publicidade e produzia anúncios de pano de boca. Numa caricatura cruel, ele foi desenhado como enorme corpo nu e com asas de anjo, a propagar os relógios Omega. Isso porque a marca tinha por agente no Brasil, um desafeto do caricaturado.

De quando em vez, o próprio Oliveira Lima – que foi professor convidado em Harvard, assim como a nossa querida caçula da Academia Paulista de Letras, Djamila Ribeiro – conseguia rir dos comentários gerados por sua condição física.

Certa vez, ao ser apresentado, no Instituto Arqueológico de Pernambuco, a um senador estadual – à época em que havia Senado também nos Estados-membros – este quis demonstrar a profunda admiração pelo historiador e, ao comentário de que ele era um homem demasiadamente robusto, comentou:

“O homem é gordo, muito gordo mesmo, mas é uma gordura fina!”.

O próprio Oliveira Lima passou adiante a observação de seu conterrâneo, considerando-o um verdadeiro achado de adulação.

Já o Barão do Rio Branco, e é o próprio Oliveira Lima quem o afirma em suas memórias, a adiposidade do colega de Academia era motivo de consolação. O Barão era uma bela figura de homem, considerado, ao lado de Joaquim Nabuco, um dos espécimes másculos brasileiros verdadeiramente paradigmáticos em termos estéticos, mas tinha o desgosto da barriga proeminente.

De vez em quando, dizia a Oliveira Lima:

“Precisamos passear juntos pela Rua do Ouvidor, para que vejam que o senhor é mais gordo do que eu!”.

E Oliveira Lima, a responder:

- “Nem sofremos comparação. E eu não tenho dúvida em servir-lhe de “repoussoir”.

“Repoussoir”, palavra francesa que designa o fenômeno constatado em artes plásticas, notadamente a pintura, que faz realçar uma figura, para deixar em segundo plano uma outra. Oliveira Lima quis dizer que a sua gordura era tão superior à do Barão, que todos – naturalmente – prestariam mais atenção à sua portentosa figura, deixando de observar que Rio Branco também tinha suas gordurinhas.

Até os diálogos antigos eram mais eruditos, plenos de fino humor. Onde foi parar o bom tom, o bom gosto, a elegância no relacionamento pessoal em nossos dias? Não é válido acreditar, muita vez, que o projeto humano é aparentemente um fracasso, de tanto retrocesso registrado?

Uma tarefa restrita a raríssimas pessoas é a de resgatar o bom tom, a fidalguia no trato, a beleza das frases, a escolha de verbetes polidos, para trazer um pouco de harmonia que as redes sociais majoritariamente debilitaram nos últimos tempos.

O mundo precisa cada vez mais de beleza. Essa mesma beleza que o egoísmo, a ambição, a cupidez e a insensibilidade eliminam no fabuloso espetáculo de uma natureza exuberante e de esplêndida biodiversidade.

Comecemos aos poucos. Passo a passo. O passo é o movimento natural dos humanos. Mas, se houver determinação, eles podem nos conduzir longe, numa caminhada interminável rumo ao aprimoramento do convívio e à edificação de uma sociedade coesa, solidária e fraterna.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 22 08 2025




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