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A CHALEIRA DE NEURENE
Acadêmico: Gabriel Chalita
quem mente para prejudicar alguém é dono de alguma sujeira dentro de si mesmo que faz desperdiçar bonitos entardeceres.

A chaleira de Neurene


Ainda antes do dia dizer meio-dia, ouvi a notícia de uma mentira. Ouvi e barulhei por dentro. Por que as pessoas mentem? 

Nos barulhos de dentro, pensava na força dos boatos. Os de hoje e os de outros tempos, também. E dos rumores. Que são diferentes dos boatos. 

E voltei à mentira. E voltei aos escritos dentro de minha alma de outros tempos da vida longa que já vivo. 

Longa era a idade de Neurene, uma mulher que era sempre consultada para solucionar os dias sem calor. E a história que se deu é a que resumo agora. 

Julieta decidiu por abrir mão do noivado, depois que conheceu Romeu. É verdade. Na cidade da minha infância, havia uma Julieta que se apaixonou por um Romeu.E, por isso, deu por encerrada a promessa de dias comuns com Abelardo.

Uma boataria surgiu na cidade de uma doença que era das mais sigilosas e que havia tomado o corpo de Julieta. E que nem ela sabia. Pois bem, Abelardo era um homem de muitas posses, ao contrário de Romeu, um jovem sonhador com vontade de futuro. 

A notícia da doença foi batendo de porta em porta até chegar à família de Julieta que achou por bem cuidar de um retorno ao porto seguro, Abelardo. Quem pagaria os medicamentos e os doutores e as internações?

Nas conversas, não diziam da doença, mas era a doença o que tinham em mente. Até as pedras silenciosas sabiam da boataria, menos Julieta, menos Romeu.  Ela era caprichosa em suas escolhas e disse 'não'. Foi quando resolveram ir em busca de Neurene para o convencimento.

Neurene colocou a chaleira no fogão e aguardou a fumaça dizer que o chá estava pronto. E ouviu. E desacreditou. E decidiu por dizer à Julieta os rumores que viraram boato e que viraram decisão de convencimento de uma volta à Abelardo. O desmentido se deu com forças e a cidade se virou contra Abelardo. Abelardo jurou não ser ele o autor da façanha e colocou a culpa em Tereza Cristina, a que antes tinha o amor de Romeu.

O assunto percorria mais a cidade que a comemoração das festas de São João. A velha Neurene deu de ombros às explicações do nascimento do rumor que gerou o boato e que ocupou o tempo de tanta gente.

Casaram Romeu e Julieta. Abelardo mudou de cidade e Tereza Cristina entrou para o convento. Eu era criança e admirei a serenidade de Neurene em desdizer os ditos que não deveriam ter sido ditos. 

Voltei à mentira e vasculhei razões antropológicas de ontem e de hoje. Por que as pessoas mentem?

Sobre os boatos, os que agem podem ter uma desonestidade intelectual ou uma desonestidade moral. A intelectual é aquele que não sabe, simplesmente acredita e passa adiante. A moral é aquele que sabe da mentira, mas tem razões sujas para propalar. 

Almocei depois da notícia da tal mentira. Não sou dos que gostam das ruminações. Dou por encerrado alguns assuntos, como a velha Neurene. Depois da fumaça dizendo da água fervente é tempo de acalmar. Tomar o chá e agradecer o tempo tão revelador das verdades. 

Não sei quem, naquele tempo, inventou a doença de Julieta. Sei quem, nos tempos de hoje, disse a mentira que causou barulhos e doeu em gente séria.

Crente que sou no ser humano, tenho a teimosia de sempre buscar explicações quando explicações não são suficientes para dizer que quem mente para prejudicar alguém é dono de alguma sujeira dentro de si mesmo que faz desperdiçar bonitos entardeceres.

Crente que sou no ser humano, prossigo atestando que quem conhece o amor não escolhe o malfeito. 

Romeu e Julieta escolheram o amor. E também Neurene, a sabia conselheira da minha cidade. Quero eu prosseguir nessas mesmas estradas, enquanto estradas eu tiver para prosseguir.

Publicado em O Dia, em 17 08 2025



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