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![]() Acadêmico: Gabriel Chalita Eu gostava de observar tudo o que meu pai fazia. Gostava de seu beijo no dia começando. Gostava de sua volta para casa, perto da hora da Ave Maria.
Fica comigo, pai É noite e o barulho inventa imaginações dentro de mim. Era criança demais para interromperem a criatividade. Acreditei em dizeres sobre seres que rondavam o quintal. Seres da noite. E, então, pedi - "Fica comigo, pai". Dispensou perguntas e ficou ao meu lado. Eu queria que ele ouvisse os barulhos. Eu queria ver se o medo era meu ou do mundo inteiro. E fiquei em silêncio, mãos dadas com ele. Quando o barulho veio, ele parecia adormecido. Perturbei suas mãos, recostei de outra maneira a minha cabeça em seu peito, e ele começou a cantar baixinho. E o seu canto foi mais forte do que o barulho e eu adormeci. Quando acordei, era sol. E era dia de estar pronto. No café, o carinho alimentador. Ele, minha mãe, meus irmãos e Rosa. A que contava histórias que povoavam minha mente de imaginações dos seres da noite. Eu gostava de observar tudo o que meu pai fazia. Gostava de seu beijo no dia começando. Gostava de sua volta para casa, perto da hora da Ave Maria. Gostava de sua oração. Era bonito ver o seu semblante, falando com Deus, na cadeira de balanço, que ficava embaixo de um grande relógio que dizia as horas. As horas passaram tão rapidamente. Um dia, o "Fica comigo, pai" mudou de intenção. Eu olhava a sua partida para o Pai e chorava a vida. Era como o despedir da sabedoria, da paciência, da compreensão do medo e do sonho do outro. "Calma, filho, as coisas acontecem no seu tempo". "E quando não acontecem, pai?" "Acontecem outras, filho". Eu era jovem demais quando aceitei responsabilidades demais. "Eu tenho medo, pai" "E quem não tem, filho?" "E se eu não conseguir?" "Você tenta de novo, filho" Um dia, escrevi sua história, um livro, "Memórias de um homem bom". Era o seu aniversário de 80 anos. No livro, eu dialogo a prosa com a poesia da vida. Porque a vida é prosa e meu pai nunca se negou a ela, trabalhador incansável, solucionador de problemas, empreendedor de casas de cimento e de valores. De lojas de vender roupas e tecidos e de oferecer gentilezas. Gentilezas no ouvir, no cuidar. E meu pai era poesia. Nos dizeres de amor à minha mãe, no romantismo sem fim, no caminhar no sítio ao fim do dia e se emocionar com o pôr do sol, no ouvir a voz de Deus no som silencioso de necessidades dos seus irmãos. Nas lágrimas nas despedidas dos filhos que entraram antes na eternidade e na fé. Que fé linda a do meu pai. A fé que o fazia, em tudo, agradecer. "Fica comigo, Pai" é o que eu gostaria de dizer hoje depois de tanto tempo. O tal relógio não aceita interrupções. A vida segue. E segue, também, a memória. E, na memória, todos os instantes ficam comigo. Nos medos em tantas outras noites de tantos outros barulhos. E nos sonhos que poetizam a vontade de prosseguir vivendo. Sonhei com ele ontem. Um sonho bonito. Ele e minha mãe nadavam juntos. Não foi a primeira vez. Acordei lembrando dos nossos banhos de mar. O mar é bonito demais para não existir na eternidade. Será o daqui cópia do de lá? Só que o de lá não tem afogamentos nem outros perigos. Nem noites ou medos, talvez. O daqui tem ondas que apagam imediatismos e autorizam essência. A essência mais certa da paternidade é o amor. De um encontro, um conto ou um romance ou até uma crônica ou muitas crônicas. De um encontro, um nome, uma palavra, muitas palavras, uma vida. Meus pais se encontraram em uma calçada improvável. E, provavelmente, não se encontrariam se não fosse o encontro. Eram de países diferentes, de lugares diferentes e souberam fazer do improvável encontro uma vida, uma vida de amor. Se eu disser ao meu pai, hoje, "Fica comigo, pai", eu sei a resposta: "Eu estou contigo, filho, eu sempre estarei". Feliz dia dos pais! Publicada em O Dia, em 10 08 2025 ![]() ![]() |
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