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O PRECIOSO DIZER
Acadêmico: Gabriel Chalita
Eu, servo que sou da palavra, sei o seu poder. Aquela mulher, naquele aeroporto, com aquela pergunta e resposta, me descansou.

O precioso dizer

Era um dia cansado. Há dias em que o pensar desiste. São as pernas que nos comandam, obedientes aos relógios. Estava apressado, quando cheguei ao aeroporto. Saindo de um destino frio, embora acalorado de afetos. O cansaço, suspenso durante os encontros, veio ao meu encontro quando da chegada ao aeroporto.

No habitual deixar a mochila com as roupas e outros itens de viagem na esteira, deixei também uma caixa, presente do encontro. Foi quando uma mulher, que trabalha na segurança, no raio x do aeroporto, fez a pergunta: "É frágil"?. Respondi: "É um livro". Ela sorriu e disse: "Então, é precioso". Sorri mais ainda e agradeci. Peguei a mochila e o livro acalentado na caixa de papelão e descansei de outros pensamentos pensando na frase da mulher.

Um livro é precioso. É precioso, sim.

Sentado no avião e olhando pela janela o despedir de mais um dia, agradeci aos livros que apresentaram tantas janelas na minha alma. Desde os tempos em que, em um asilo, uma senhora me emprestava livros. Desde o tempo em que a mesma senhora pedia que eu lesse em voz alta as histórias que ela lia antes da incômoda cegueira. Foi uma infância entre velhos e livros. Digo velhos porque é como eles se diziam. Naquele asilo. Naquele tempo. Achavam mais poético que outro dizer.

Os livros foram percorrendo comigo viagens curtas de antigamente e longas de hoje em dia. Os livros aliviaram dias sem calor e noites sem tempo de terminar. Os livros me disseram ideias e me ajudaram a mudar as mesmas ideias que antes me disseram. Os livros emprestaram canteiros de palavras para que eu pudesse plantar palavras de amor. Os sentimentos precisam de palavras para serem ditos. Os sentimentos ditos são ditos, porque sentidos e, porque ditos, são sentidos. Disse a mim mesmo desistências e resistências. Em tempos diferentes. Os livros me ajudaram a separar o necessário do necessário, porque tanto as ferramentas quanto os brinquedos nos fazem vida. A vida que vive nas palavras. Que vive nas memórias e nos esquecimentos.

Os livros nos ajudam a esquecer, quando esquecer nos parece impossível. Quando esquecer nos parece o melhor a fazer. Quando o esquecer é, no início, duro e, depois, aliviador. E os livros nos ajudam a lembrar. Quantas memórias lindas oferecem paz, quando sou capaz de suspender ruminações ruins. Quando sou sábio o suficiente para limpar o que passou.

No avião, olhando pela janela, agradeci o dia em que escrevi o meu primeiro livro. Agradeci os medos. Agradeci os que compreenderam as minhas rasuras e a minha insistência em partilhar autenticidades. Quando crio personagens, sou eu. Mesmo as que são completamente diferentes de mim. Mesmo as que fazem o que eu não faria. Sou eu. Quando falo em primeira ou em segunda ou em qualquer pessoa, sou eu. Sou eu do que eu vivi e sou eu dos livros que eu li. Quando escrevo poema ou prosa, sou eu. Quando faço críticas ou elogios, quando erro e quando acerto, sou eu. Sou eu, também, do que ouvi daquela mulher. Daquela mulher, as divagações. Foi depois de uma palestra sobre o tempo que passa e o tempo que fazemos permanecer.

Na esteira, estavam passando a mochila e a caixa. Quando, então, ela pergunta da fragilidade e depois de saber, usa a semântica de "precioso" ao se referir a um livro, ela resume a vida. Afinal, quem de nós teria a arrogância de dizer que a nossa humanidade é livre da fragilidade? Talvez seja a fragilidade um sopro que a faz livre. Voamos como as palavras, quando as palavras se sabem preciosas.

Gosto dos encontros, porque encontro neles palavras que me cabem. Gosto do mundo onde cabem os livros e onde dos livros nascem caminhos frágeis e preciosos. Onde nascem amores frágeis e preciosos. Onde nasce o nascimento de dias, de intenções e até de despedidas. De cada lugar aonde vou, tento trazer algum tom que permaneça em algum canto dentro de mim. Por isso, gosto de voltar e de dizer novamente palavras.

Eu, servo que sou da palavra, sei o seu poder. Aquela mulher, naquele aeroporto, com aquela pergunta e resposta, me descansou.

Publicado em O Dia, em 03 08 2025



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