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UMA DOCE MORTE
Acadêmico: Gabriel Chalita
Se acreditamos na transcendência, acreditamos na imanência. É aqui que abrimos os portais do caminho de uma vida boa, de uma doce vida. E por que não, de uma doce morte.

Uma doce morte

Contam os que gostam das histórias de vidas que Dolores Duran, aos 29 anos, teria dito a uma moça que trabalhava em sua casa que estava tão cansada que iria dormir até morrer. E morreu.

Roberto Duailibi não disse que iria morrer. Aos 89 anos, depois de almoçar, foi deitar o seu cansaço ao lado de Sílvia, o amor de sua vida. E morreu.

Morreremos todos. Os que acreditam ou não na transcendência. Morreremos todos. Dolores acreditava na transcendência. Roberto, também.

Fui ao velório de Roberto. Fiquei olhando seus olhos fechados, suas mãos postas em posição de despedida. Roberto era dos olhos abertos. Assim abriu nossos olhos para compreender uma nova maneira de fazer comunicação. Roberto era das mãos em prontidão para a generosidade.

Conheci mais proximamente Roberto quando fomos conselheiros do Fundo Social de Solidariedade do estado de São Paulo. Conheci seu entusiasmo em melhorar o mundo. Em comunicar ao mundo o valor da bondade. Prosseguimos juntos. Em ações e em poesia. Fomos juntos ao Líbano, terra das nossas raizes. Nos emocionamos pensando na coragem dos que vieram antes de nós. Gente valente. Gente amorosa.

Liguei um dia a ele e disse que seria bom que ele se candidatasse a uma vaga na Academia Paulista de Letras. Ele ficou honrado e aceitou. Liguei dias depois dizendo que o grande poeta Paulo Bonfim havia conversado com o Celso Lafer e que ele seria candidato. Que minha sugestão seria que ele aguardasse uma outra vaga.

A resposta dele foi que até ele votaria no Celso. Que aguardaria, sim. E depois entrou e depois viveu dias plenos entre palavras e afetos na nossa casa no Largo do Arouche.

No dia do velório abracei Sílvia, o seu amor. Ela jogava beijos para o marido. Parecia desacreditar da despedida. Eu, também.

Se acreditamos na transcendência, acreditamos na imanência. É aqui que abrimos os portais do caminho de uma vida boa, de uma doce vida. E por que não, de uma doce morte.

A imanência somos nós. São os nossos cotidianos. Roberto viveu dias lindos e dias difíceis. Viveu o amor e a dor. Viveu. Gostava de ouvir suas histórias e até de saber de algumas nuvens que atrapalhavam seu calor. No frio da existência, precisamos de amigos. A amizade perfuma de transcendência a imanência. Dizia Aristoteles que é como um rastro do divino no humano para nos iluminarmos.

Escolhi começar com Dolores para falar de Roberto. Talvez porque quisesse dizer que não importa se vivemos 29 ou 89 anos. Talvez por outras razões também. Dolores brincou com sua filha no dia em que morreu. Foi uma despedida. Roberto se alimentou com Sílvia. Conversaram, enquanto faziam uma última refeição juntos. Comeram doce? Não sei. Sei que deitar ao lado de quem se ama e fechar os olhos e dormir a eternidade é uma doce morte.

Com o abraço de Sílvia, voltei para casa triste e feliz. Ouvindo Dolores, tive vontade de escrever sobre Roberto. Escrevendo sobre Roberto, tenho vontade de ser melhor porque a vida é imanência. Porque a vida é transcendência.

Já sinto saudade, meu amigo Roberto Duailibi.

Publicado em O Dia, em 27 07 2025



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