|
||||
![]() | ||||
![]() Acadêmico: Gabriel Chalita Ele se foi. Ele se foi luz e sombras, muitas sombras. Ele se foi e eu fiquei. Fiquei entre desejo e medo.
A mordida do pão Ele se foi. Ele se foi luz e sombras, muitas sombras. Ele se foi e eu fiquei. Fiquei entre desejo e medo. Fiquei entre o que senti e o que eu senti que jamais sentiria. Não posso negar que ainda sou dele. E não é que eu seja uma menina experimentando os primeiros toques de alguém. Fui tocada, trocada e matriculada na escola das decisões de viver só. Meu marido rondava perto querendo um reinício e eu disse 'não'. Consegui, finalmente, dizer 'não'. E o tempo trouxe outros sons bonitos, como a amizade, o trabalho, o caminhar desobrigado de tantas compreensões do comportamento do outro. E veio o outro. Separado há não muito. Com idade parecida. Com um sorriso que reabriu minha sagrada decisão de viver só. Veio o primeiro beijo. A primeira noite de amor. O primeiro bagunçar de sentimentos. A primeira indelicadeza. Ao contrário do marido que antes tive, ele era agressivo. Desentendi quando gritou comigo. Uma incompreensão de um horário de encontro. Disse que não podia e, então, ele ofendeu onde dói. Chorei sozinha e disse a mim mesma que era o fim. Ele voltou dias depois. Com o perfume de antes, falou carinhos e cedi à sede de ser dele. Dele ou de alguém, não sei. E veio o primeiro tapa. Eu sou mulher independente. Jamais admitiria que homem algum fizesse isso. Admiti. Chorei sozinha. Ele chorou comigo, depois. Ajoelhou um mundo de dizeres de arrependimentos. Jurou jamais repetir. E fizemos amor. Ou sei lá o que fizemos. O amor não vem com machucaduras. O amor não impede a luz de ser luz. O amor não sombreia a vida. Jamais revelei aos outros o quarto. Como dizer o que eu permitia? Como desvestir a fortaleza que eu inventei e chorar no colo de alguém a desinvenção da razão? Minha mãe percebia minhas mudanças. Um dia radiante, arrumada para a felicidade. No outro, ausente. Inventei razões para o choro. Diante dos tantos que comando na empresa, vesti o disfarce. Não misturo as coisas. Misturo dentro de mim. Como não conseguia desenlaçar, fiz promessa para que ele se fosse. E que me deixasse voltar a ser quem, um dia, eu fui. Sua irmã me disse que ele era doente, mas que me amava. Ela disse sem eu nada dizer. E sem continuar dizendo. Ele ia do amor profundo ao desligamento de qualquer lucidez. Um cisco e as agressões vinham. Alegrias alheias o incomodavam. E era no quarto que ele demonstrava. Assustei a mim mesma agradecendo que as agressões não eram públicas, que, em público, ele era doce. Eu sou mulher de liberdade suficiente para o convidar a ir embora. Ele foi embora. Depois de um café da manhã. Depois de eu dizer nada. Depois de morder o pão com sua boca sedutora e deixar o resto sobre o prato na mesa posta. O meu corpo ardia de desejo. E de medo. Eu me incriminava toda vez que chorava. Sempre detestei que me vissem frágil. Eu chorei. Desta vez, ele nem chorou junto nem se desculpou nem fez promessas de permanecer para sempre. Ele disse, apenas, que, se um dia ele se curasse, ele voltaria para mim. Eu tive ímpetos de dizer que eu o ajudaria a se curar. Que com o amor a cura vem mais cedo. Que aquele pedaço de pão mordido não poderia ficar na mesa sem ele. Alguma força forçou o meu silêncio. Alguma luz demitiu as minha sombras. Apenas assenti com a cabeça e vi o seu levantar com os olhos marejados e seu sair alinhado como uma dança em seu final. Não há razões para o aplauso. Senti um fracasso semelhante ao do fim do meu casamento. Qual o fim da vida? Pergunto a mim mesma. Nada me falta e me falta. É cedo para dizer que amanheceu. Olho o pão deixado e dou uma mordida na parte que ele mordeu. Poderia ser diferente. Será diferente. O desejo terá de compreender. E o medo terá de me ajudar. Viver nas sombras? Não. Publicado em O Dia, em 20 07 2025 ![]() ![]() |
||||
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562. |