Compartilhe
Tamanho da fonte


QUAL ÂNGELA?
Acadêmico: Gabriel Chalita
A solidão da escrita é acompanhada de vozes de todos os tempos. E há, ainda, algo do mistério que preenche o escritor quando os escritos nascem. Há algo de mistério, também, nos encontros.

"Qual Ângela?" é o título de minha crônica publicada, neste domingo, em O Dia:

Qual Ângela?

Era quase noite, mas o dia ainda estava. Eu estava na Croácia, verão europeu. O despedir do dia era quando o dia quase anunciava um outro dia. Então, o sol permanecia mesmo depois da cheia lua. 

Eu havia tomado banho de mar no abrir do dia e trabalhado em um texto de teatro o dia todo. Textos de teatro têm desafios diferentes. Criar a história, a trama, imaginar os artistas emprestando o corpo, a alma, a vida para dar vida a quem criamos.
A solidão da escrita é acompanhada de vozes de todos os tempos. E há, ainda, algo do mistério que preenche o escritor quando os escritos nascem. Há algo de mistério, também, nos encontros. 

Era quase noite, como eu dizia, quando encontrei Ângela. Depois do trabalho da escrita, resolvi caminhar até a cidade antiga de Dubrovnik. E fui. Havia um ir e vir de gentes e uma brisa suave e um grupo que ensaiava orquestra e coral em frente a uma Igreja. Havia uma fila para comprar sorvetes. E um banco. E Ângela. Os que estavam comigo foram em busca do doce do sorvete. E eu, sem saber, adocei a vida com Ângela. 

Sentei-me em uma ponta e ela estava na outra. “Pode se aproximar”, disse ela. Eu sorri e obedeci. “Perdoe, moço, meu inglês não é muito bom”. Eu disse que não tinha importância, que eu não falava croata. Ela sorriu: “Eu também não, sou argentina”. Disse eu que éramos vizinhos, que eu vinha do Brasil. “Então, posso falar em espanhol, oh, que coisa maravilhosa”. E foi se desculpando se estava interrompendo o meu silêncio. Eu disse que era um prazer conversar com ela.

Perguntei o seu nome. “Ângela, mas não pergunte a minha idade, se perguntar, vou mentir. Minto sempre”. Eu disse que não perguntaria sobre a idade, mas fiquei curioso sobre a mentira assumida, constante. “Eu sou ao menos duas, sabe. Ao menos duas”. Fiquei olhando atento querendo mais. “Sou bondosa como devem ser as pessoas que já viveram o tanto que eu vivi e que ganharam alguma compreensão. A vida é tudo menos permanência. Os anos vão se desgrudando de nós sem que consigamos nos agarrar a eles”.

No silêncio, eu perguntei sobre a outra Ângela. Ela fingiu não entender: “Qual Ângela?”. Eu disse sobre a que provavelmente não seria bondosa. “Ah, sim, a outra é arredia, entediada com pessoas entediantes, falta a ela a paciência que o tempo deveria ter garantido”. Enquanto eu ensaiava uma outra pergunta, ela prosseguiu. “Minha filha diz que sou inadministrável, vejam só, imagine uma filha chegar a essa conclusão tão impertinente”. Eu repeti o inadministrável. “Gostou, não é, em português a palavra é semelhante?”. Eu respondi que parecida. “São parecidos os filhos que querem reduzir os pais aos seus valores de certo e errado. Eu pilho deles. Rio dela e do menino. Tenho dois filhos. Nos damos bem. Eu os amo mais do que tudo. E eu os amo o suficiente para saber que eles não são meus e que eu não sou deles. Sou sim uma mulher inadministrável”.

Voltei ao tema das duas Ângelas e quis saber se elas se davam bem. Foi o momento dela rir gostosamente. “Eu brigo muito comigo mesma, só não briga consigo mesmo quem anula o pensamento. E quem anula o pensamento não é livre.  A liberdade é a possibilidade de pensar. O resto é resto que o tempo leva, que a vida dissolve”.

Ela quis saber de mim. Eu disse. Ela perguntou se eu também era ao menos dois. Eu respondi que muito mais do que dois. Que era fascinado pela complexidade humana. E que havia gostado muito da sua definição de liberdade. Ela voltaria para Argentina no dia seguinte e eu partiria para Roma. Ela, livremente, me disse: “Quem sabe, um dia, a gente volte a se encontrar em algum banco e que eu não precise dizer a você que chegue mais perto”. Eu dei um abraço forte em Ângela. Um abraço latino. 

Quando os que estavam comigo voltaram perguntando se eu não queria mesmo um sorvete, que estava bom demais. Eu respondi que bom demais tinha sido o meu encontro com Ângela. Somos, ao menos, dois. E só não percebemos quando não pensamos. E, quando pensamos, percebemos que somos mais. O que quer muito, o que quer pouco, o que não sabe se quer, o que decidiu desistir, o que já mudou de ideia. O que ama um amar que se foi, o que se foi com o amor que se foi, o que jura nunca mais amar, o que abre as portas e aguarda a chegada de alguém, o que vai mundo afora em busca desse alguém. 

Somos um, somos dois, somos uma humanidade inteira que vive dentro e que vive fora de nós. Na Croácia, na Argentina, na Itália, no Brasil. Nos lugares onde há gente, deveria haver pensamento e liberdade para uma conversa de fim de dia com uma mulher de muitas idades. Com qual Ângela eu conversei naquele fim de dia? Certamente, com a melhor de todas, de todos, a da bondade. Tiramos uma foto juntos e ela pediu ajuda para se levantar. Eu perguntei se ela precisava de alguma coisa. Ela respondeu: “Só mais um abraço, para agradecer a esse encontro, minha filha já está vindo, veja, agitada demais”. E rimos antes das apresentações.

O coral, que não estava longe de onde estávamos, cantava o “Hino ao amor”. Viva Edith Piaf. Há coisas que permanecem...

Publicado em O Dia, em 13 07 2025



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.