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![]() Acadêmico: José Renato Nalini Pregar o valor da gentileza, da polidez, dos bons modos, é missão que não rende frutos. A contaminação do vírus da rudeza, da grosseria e da rispidez é rápida e não respeita idade, raça ou origem
Franqueza perigosa O escritor Manuel Ferreira Garcia Redondo (1854-1916), quando estudava em Coimbra, em viagem de trem do Porto para a sede da famosa Universidade, sentou-se ao lado de um senhor magro, o rosto picado por bexigas, óculos escuros, com quem conversou animadamente. Veio à baila o romance “O retrato de Ricardina”, que havia sido lançado por Camilo Castelo Branco, e cujo exemplar Garcia Redondo trouxera para ler durante a viagem. - “Que tal esse livro?”, perguntou-lhe um colega de assento. E, de imediato, Garcia Redondo começou a criticar a obra. Apontou falhas flagrantes e veio a ser ajudado pelo senhor de óculos que começara a prestar atenção na conversa e logo entrou nela. - “O senhor tem razão. De fato, o livro é ruim!”. Passou a enumerar outros defeitos graves e depois o assunto se encaminhou por outras veredas. Horas depois, ao descer na estação, Garcia Redondo não encontrou condução que o levasse ao seu destino. O senhor, muito atencioso, fez-lhe um convite: - “Eu tenho um carro à minha disposição. Venha comigo. Na cidade, se não lhe for incômodo, venha para a minha casa e jantamos juntos. Amanhã, com mais calma, o senhor retoma os seus afazeres”. Garcia Redondo não se fez de rogado e aceitou a gentileza. Ao chegarem, viu que as pessoas acenavam para o seu benfeitor de forma efusiva e o saudavam: - “Salve, Camilo! Que bom estares de volta!”. O estudante ficou pasmo. Aterrorizado até. Seria ele o romancista Camilo Castelo Branco, alvo de tão ásperas críticas durante a viagem? Daí a momentos, ao apresentar o estudante à roda de admiradores e amigos que se achava à sua espera, anunciou: - “Apresento-lhes o meu crítico mais sincero, o qual é, ao mesmo tempo, um rapaz cheio de ideais e de boas ideias!”. Garcia Redondo, confundido, encabulado, não sabia como desculpar-se. Mas Camilo desfez a sombra de embaraço, concordando mais uma vez com os seus reparos ao livro e afirmando-lhe que, na segunda edição, o romance seria melhorado. Só então pousou a mão no ombro do jovem: - “Agora, o que eu preciso é saber o seu nome”. Ao ouvir que o estudante se chamava Garcia Redondo, pilheriou, sorrindo e abrindo os braços para abraçá-lo: - “Redondo! Mas você é tão magrinho! É isso, os nomes são sempre paradoxais!”. Garcia Redondo, além de ser precoce na crítica literária, era muito cônscio de seus direitos. Ao descer na estação do Porto, foi solicitado a abrir a sua mala para que fosse examinada por um guarda aduaneiro. Ao fim da revista, perguntou ao funcionário: - “O senhor está satisfeito?”. E o guarda: - “Perfeitamente satisfeito”. - “Pois eu não estou!”. - “Não está, por que?” E Garcia Redondo, aumentando o tom da voz e mostrando desagrado: - “Acalme-se, meu amigo. Assim como o senhor, no seu dever de ofício, tem o direito de desconfiar de mim, revistando-me a mala, na presunção de que eu queria ou poderia roubar a Nação, eu tenho o direito de desconfiar do senhor, receando que queira ou possa roubar a mim!”. E muito resoluto: - “Portanto, tenha paciência. Agora sou eu que exijo que o senhor seja revistado”. O guarda, fora de si, acabou por acatar e esvaziou os bolsos do paletó e da calça, resmungando, aflito: - “Veja, veja, veja... Não tem nada de seu comigo!”. E o estudante, após exibição do último objeto, já segurando a alça da mala, pronto para ir embora: - “Agora estou satisfeito!”. Teve sorte, Garcia Redondo, por encontrar um funcionário que não exorbitou em violência verbal ou física. Hoje, a síndrome de “pequena autoridade” produz uma coleção infinita de episódios bizarros e de mau gosto. O “sabe com quem está falando” é uma instituição erradicável dos costumes burocráticos e isso não acontece apenas no Brasil. Sinal do embrutecimento dos tempos turvos que nos são dados viver. Pregar o valor da gentileza, da polidez, dos bons modos, é missão que não rende frutos. A contaminação do vírus da rudeza, da grosseria e da rispidez é rápida e não respeita idade, raça ou origem. Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 11 07 2025 ![]() ![]() |
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