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A VOLÚPIA DA INCONSTITUCIONALIDADE
Acadêmico: José Renato Nalini
As melhores intenções, se distanciadas dos efeitos reais delas derivadas, podem gerar insuperáveis prejuízos à população

A volúpia da inconstitucionalidade

Considerou-se um aprimoramento democrático a ampliação do rol dos legitimados à propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), obra do constituinte de 1988. À primeira vista, credenciar outros agentes a provocar apreciação de compatibilidade normativa com o texto fundante é saudável. O intuito é extirpar do sistema tudo aquilo que não condiga com o texto e com o espírito da Lei Maior, cuja vontade prevalece. Essa é a opção da República Federativa do Brasil, no Estado de Direito de índole democrática ainda vigente.

Na prática, não é raro ocorrer efeito perverso dessa generosa inclusão de outros legitimados à propositura de ação de inconstitucionalidade. Nem sempre se observa o contexto em que o instrumento será utilizado. É preciso considerar que a Constituição federal é a resposta brasileira a um período de autoritarismo e que a sufocada pretensão democrática nela quis introduzir temas não necessariamente constitucionais. O resultado é um texto analítico e abrangente, que transforma nossa lei fundamental numa das mais extensas do mundo.

Essa dimensão multiplica a potencialidade de propositura de ações, nem todas destinadas a conferir a necessária harmonia do sistema normativo. Não é raro que muitas delas se originem de questões ideológicas e venham a obter liminares, cujo efeito é procrastinar políticas públicas essenciais e necessárias ao atendimento das demandas sociais.

Outro aspecto a ser observado é que o Brasil vive a cultura hermenêutica. Há interpretações em todos os sentidos e basta uma capacidade retórica para formular argumentações plausíveis, o que também prolifera o rol das arguições. Escancarou-se o acesso à Justiça e tudo pode chegar à apreciação dos guardiões da constitucionalidade.

Há inúmeros exemplos da utilização excessiva dessas ações, em várias instâncias. O sistema federativo se caracteriza pela existência de um texto constitucional federal e de constituições estaduais em cada Estado-membro. Só falta a Constituição municipal, embora a Lei Orgânica atenda a esse objetivo. O questionamento é intenso e crescente.

Pode-se mencionar uma ADI movida por um partido político na qual figuram como réus o prefeito da capital e o presidente da Câmara Municipal. O objeto é a Lei Municipal 18.225, de 15 de janeiro de 2025, que dispõe sobre a alteração do caput do artigo 50 e os incisos III e IV do § 6.º do mesmo dispositivo da Lei 14.933, de 5/6/2009, com a redação dada pelo artigo 1.º da Lei 16.802, de 17/1/2018.

É uma disposição de extremo interesse para a grande metrópole, a maior cidade brasileira e uma das maiores do mundo. Enfrenta emergências climáticas que afetam sua população e o maior vilão do aquecimento global é o trânsito. Cerca de 8 milhões de veículos, movidos a combustível fóssil, percorrem diuturnamente as vias públicas da mancha conurbada.

A lei inquinada, na verdade, não representa retrocesso na tutela municipal do meio ambiente, mas introduz a possibilidade de abastecimento de ônibus do transporte coletivo com o biometano, combustível do futuro, diante da inviabilidade de imediata eletrificação da frota municipal.

O biometano é produzido com a utilização dos resíduos orgânicos produzidos pela população paulistana, que todos os dias arremessa mais de 15 mil toneladas de dejetos no sistema de coleta pública. É uma concretização bastante eficiente da política de logística reversa e de economia circular. Em lugar de destinação para aterro sanitário, os resíduos sólidos orgânicos são transformados em biometano. Todos ganham com isso.

Recente seminário realizado no âmbito da Prefeitura contou com a participação de especialistas no setor e a conclusão foi de que essa alternativa, conciliada com o projeto de eletrificação, que só encontrou óbice na estrutura de recarga das baterias, atende à intenção de reduzir substancialmente a emissão dos gases venenosos causadores do efeito estufa.

Ao se suspender os efeitos da Lei 18.225, de 15/1/2025, impede-se que se caminhe nessa missão urgente de extirpar do trânsito paulistano os coletivos movidos a combustível fóssil, com inegável prejuízo à coletividade que supera os 12 milhões de habitantes.

As melhores intenções, se distanciadas dos efeitos reais delas derivadas, podem gerar insuperáveis prejuízos à população. Esta, a única destinatária da atuação do poder público, cujas esferas tripartites funcionam à luz do ensinamento de Montesquieu, que previu a separação das principais funções estatais.

Esse fenômeno é apenas um, dentre a infinidade de hipóteses em que se identifica o paradoxo contemporâneo: o direito é uma ferramenta de solução de problemas, de redução da indesejável, mas inafastável carga de aflições que persegue todos os humanos durante sua frágil e efêmera peregrinação pela Terra. Quando utilizado com exagero, como a constatável volúpia com que se fulminam por inconstitucionalidades diplomas gerados no Parlamento e sancionados pelo Executivo, ele desserve aos fins para os quais foi preordenado.

Será que tudo o que o Legislativo edita, em nome do povo, único titular da soberania, é contaminado por inconstitucionalidade?

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Opinião, em 25 06 2025



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