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![]() Acadêmico: Gabriel Chalita Ela era já senhora, e eu amante das curiosidades. Como toda criança tende a ser, antes dos tantos muros desnecessários que se constroem entre o que sonhamos e o que julgam que não podemos atingir.Sou pulador de muros, por isso prossigo na teimosia do sonho.
As anotações de Henriqueta Ela era já senhora, e eu amante das curiosidades. Como toda criança tende a ser, antes dos tantos muros desnecessários que se constroem entre o que sonhamos e o que julgam que não podemos atingir. Sou pulador de muros, por isso prossigo na teimosia do sonho. Henriqueta morava em uma casa cuja janela dava para calçada, cuja calçada era frequentada por famílias, principalmente, em dias quentes. Em dias frios, tínhamos o fogão à lenha, as cobertas e os afetos. Os afetos são bons em qualquer estação. Ela ficava na janela e gostava da prosa. Não poucas vezes, nos convidava para entrar. Invariavelmente, havia um caderno e uma caneta ao seu lado. Eu sempre gostei de reparar nessas sutilezas. Como a espontaneidade de criança é construtora de pontes, eu, então, perguntei. E ela disse das ideias que o dia trazia. De uma frase aqui. De uma lembrança ali. De um momento que merecia uma anotação. Eu pedi que ela lesse para mim. Ela não se importou. Colocou água no fogão para preparar um chá de ervas que, segundo ela, era um bom acalmador de ansiedades e me convidou para que me acomodasse no velho sofá, coberto com um tecido grande, que disfarçava a gastura do tempo. As frases eram soltas e eram belas. "Uma mulher chorando sem alguém que oferece lenços". Ela parava, fechava o caderno e os olhos e lembrava. E comentava dizendo que era preciso ter lenços para oferecer. Era um descuido sair sem lenços. Hoje, penso na metáfora. No estar pronto para amenizar dores dos que nos cruzam os caminhos. "Um cachorro perdido". Eu perguntei se tinha mais. Ela disse que bastava pensar em um cachorro perdido. Por que os cachorros se perdem? Os cachorros se perdem? "No fim do dia o fim da vida se explica". Crianças não costumam pensar na morte até que a morte apareça. Os dias morrem. Os dias nascem. Os dias que se findam explica a vida que se finda? Eu não sei. Sei que Henriqueta anotou. "Não esquecer de levar rosas para Joana, ela precisa de alegria". Eu sabia quem era Joana. Uma mulher que morava na mesma rua e que vivia uma interrupção da alegria. O marido havia resolvido pôr fim na história deles e se foi com outra. Rosas não resolvem a dor do abandono. Rosas resolvem a dor do abandono. Rosas lembram o desabrochar bonito da vida. E, também, a efemeridade. "Tudo passa". Frase tantas vezes dita. Duas palavras apenas e um mar de significados. "Quero conhecer o mar". E ela conheceu o mar. Foi pouco antes de morrer. Sua filha a levou. Eu já era um pouco crescido, quando ela me disse do mar. Eu já conhecia o mar. Eu não conhecia o mar nos dizeres de Henriqueta. "O mar é uma porção de mistérios para que saibamos que sabemos nada". E assim outras frases. Havia poemas dos quais não consigo me lembrar. E outras palavras. E outras noites, sentados na calçada e ela conversando com os vizinhos. Meu pai era um bom ouvinte. E um bom observador da alma humana. "Henriqueta é uma mulher cheia da sabedoria". Eu tenho o costume das anotações. Algumas faço no celular mesmo, mas muitas em cadernos. Vidas dos outros que inspiram a minha. Cultivo cada vez mais a presença que ensina, que acolhe, que ama. Dia desse, li de uma mulher de 90 anos que faz um varal solidário na sua rua para amenizar os frios em tempos de inverno. Vi seus dizeres do que cada um pode fazer para dar alegria aos outros. Lembrei das rosas de Henriqueta amenizando a dor de Joana. O pôr do sol da nossa rua era bonito de ser ver. E ela gostava de olhar e agradecer. "É beleza demais, não é menino?" Eu dizia que sim. A beleza está, também, nos escritos que escrevem uma vida que vê além. Um dia, ela explicou ao Tião, outro vizinho, que andava nas lamúrias pela falta de dinheiro, que dizia querer ganhar na loteria para ser milionário e, então, feliz, que a felicidade estava em outro lugar. "Ontem mesmo fui à Santa Casa, visitar o Ataíde, um dos homens mais ricos da cidade, ele já está de partida, falou tanto de saudade, em nenhum momento falou de coisas, só de pessoas, de momentos, de sentimentos". A riqueza é sentir também a paz que eu sinto, quando me lembro de Henriqueta e das suas anotações. Publicado em O Dia, em 22 06 2025 ![]() ![]() |
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