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ESSE É O MEU JEITO
Acadêmico: José Renato Nalini
Pense-se em Aluísio Azevedo, romancista famoso, autor de “O Mulato”, “Casa de Pensão” e “O Homem”. Vivia exclusivamente da venda de seus livros. Mas não se considerava um vitorioso. Ao contrário, sua fala era a de um malogrado, que escrevia por força da fatalidade

Esse é o meu jeito

Escritores de verdade são pessoas estranhas. Singulares, cheias de esquisitices. O homem simples, humilde, claro, objetivo e acessível pode até escrever. Mas não é escritor.

Essa a observação de quem conviveu e continua a conviver com alguns verdadeiros escritores e de quem gosta de ler suas biografias. Não é difícil encontrar infinitos exemplos.

Pense-se em Aluísio Azevedo, romancista famoso, autor de “O Mulato”, “Casa de Pensão” e “O Homem”. Vivia exclusivamente da venda de seus livros. Mas não se considerava um vitorioso. Ao contrário, sua fala era a de um malogrado, que escrevia por força da fatalidade.

Os amigos procuravam enaltecer sua obra e um deles era Coelho Neto, que procurava combater seu pessimismo:

- “As letras foram-te sempre propícias, desde a sua estreia no Maranhão!”.

E Aluísio, continuando a se queixar:

- “Dão-me as letras para viver, mas eu é que sei como vivo!”

Reiterou uma promessa que sempre fazia para a sua roda:

- “Digo-te apenas que no dia – que, aliás, não espero – em que conseguisse alguma coisa que me garantisse o teto e a mesa, deixava de mão pena, papel e tinta e todas essas burugundangas que só têm servido para incompatibilizar-me com o clero, a nobreza e o povo...”

Algum tempo depois, nomeado Cônsul do Brasil ele cumpriu a promessa. Nunca mais escreveu um só livro, nem quis saber de passar dias e dias labutando na redação de um novo romance.

Mas enquanto Coelho Neto era seu companheiro e incentivador, Aluísio Azevedo não pagava com idêntica moeda. Numa fase difícil da vida, Coelho Neto escreveu os primeiros cantos de um poema em prosa chamado “Guanabara”.

Como era costume àquele tempo, numa tarde domingueira reuniu alguns amigos para ler-lhes seu trabalho. Quase todos foram unânimes em elogiá-lo. Um dos companheiros o comparou a Hesíodo, na “Teogonia”. Outro o colocou à altura de Dante, na “Divina Comédia”.

Enquanto todos teciam encômios, Aluísio Azevedo mantinha-se calado. Até que Coelho Neto o provocou.

-“E você, Aluísio, o que achou?

- “Acho o seu poema por demais cerebrino. Não é propriamente uma concepção: é um delírio intelectual. Não é o produto de uma ação estética mas a resultante mórbida de uma super excitação. Em palavras mais claras: esse teu Anhangá merencório subiu do abismo do teu estômago. Um bife com petit pois bastava para fazer desse revoltado o mais pacífico dos anjos!”.

Muito desapontado, Coelho Neto indagou:

- “Achas que o meu poema não presta?”

- “Acho-o superabundante: tema desconexão de um delírio!”

- “E se eu refundi-lo?”

Aluísio não se fez de rogado:

- “Come primeiro. Antes de reescrevê-lo, procure se alimentar. Em vez de pó de diamante, atira-te à farinha seca. Come. Com a digestão tranquila, estou certo de que hás de ver as agudas arestas do teu poema, que machucam os nossos ouvidos...”

E concluiu o conselho:

- “Vai a um bom restaurante. A inanição alucina. Não tomes por inspiração o que é apenas o desvario do inanido. O que você tem é fome!”.

Esse era Aluísio Azevedo que um dia recebeu de fraque um conterrâneo que quis conhecê-lo, atraído por sua fama. Era Augusto de Lima, que chegou ao Rio de Janeiro e admirava muito o autor de “O Mulato”. Raimundo Correia disse que o levaria à casa do romancista, mas Augusto de Lima achou que não estava bem-vestido para a visita.

Raimundo disse que não se preocupasse:

- “Tu não fazes ideia da vida literária daqui. Vês todo esse alvoroço em torno do último livro do Aluísio: imaginas logo um Apolo, de gesto olímpico e olhar desdenhoso. Pois meu caro, vais ver o templo onde esse deus, que tanto receias ver, cria as maravilhas de sua arte!”.

Mas Augusto de Lima ainda estava cético e não se considerava à altura de conhecer seu ídolo. Teve certeza disso quando Aluísio recebeu a dupla todo enfatiotado. Mas tentou se explicar:

- “Desculpem-me aparecer neste rigor, porque é a única roupa que possuo, não tendo vindo da lavadeira aquela com que ando em casa...”

Esse era o jeito de Aluísio Azevedo. Quem é que o lê hoje em dia?

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 03 06 2025



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