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FAMÉLICO INTELECTO
Acadêmico: José Renato Nalini
A história de muitos escritores é a crônica da luta diuturna para se alimentar e dar sustento à prole. Foi assim que o aventureiro francês Émile Rouède (1848-1908), que era pintor, jornalista, teatrólogo e escritor, enfrentava dificuldades para subsistir

Famélico intelecto

Novidade não é, que intelectual que pretenda viver só do intelecto pode vir a morrer de inanição. Escrever, compor poesias, ensinar, tudo é considerado algo para deleite e entretenimento. Não para dar sustento a quem se dedique a tais insignificâncias.

A história de muitos escritores é a crônica da luta diuturna para se alimentar e dar sustento à prole. Foi assim que o aventureiro francês Émile Rouède (1848-1908), que era pintor, jornalista, teatrólogo e escritor, enfrentava dificuldades para subsistir. Era frequentador da roda boêmia dos intelectuais que depois formaram a Academia Brasileira de Letras e aderiu à causa abolicionista, inclusive pintando quadros para angariar recursos para o movimento.

Numa fase de piora em sua situação financeira, recorreu a José do Patrocínio (José Carlos do Patrocínio- 1853-1905), o jornalista, escritor, orador e ativista político tão importante no movimento para a libertação dos escravos e pessoa muito sensível em relação à miséria alheia. José do Patrocínio era diretor do jornal “Cidade do Rio” e condoeu-se da sorte do amigo. A ele confiou a tradução de um romance-folhetim para publicação no jornal, à razão de cem réis a linha.

Dedicou-se ao estafante trabalho, mas sentindo-se mais desafogado de finanças, o transferiu para Guimarães Passos (1867-1909), a quem paga oitenta réis a linha e ficando com vinte. Por sua vez, Guimarães Passos, sem nada dizer a Emilio Rouède, transferiu a tarefa a Coelho Neto (Henrique Maximiano Coelho Neto – 1864-1934), mediante pagamento de sessenta réis. Coelho Neto, por fim, transfere a tradução para Olavo Bilac (1865-1918), pagando-lhe quarenta réis.

À custa do esforço do maior poeta parnasiano do Brasil, o primeiro “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, ganhavam vinte réis, sem qualquer trabalho ou preocupação, Coelho Neto, Guimarães Passos e Emílio (ou Émile) Rouède.

Só que Bilac, um belo dia, descobre a exploração de que é vítima e resolve tirar uma desforra. Ao traduzir a cena em que o galã do romance entra por uma janela e abusa da honra de uma donzela, altas horas da noite, o poeta acrescenta um trecho inexistente. Um raio de luz, entrando no quarto, batia em cheio no rosto do sedutor. Quem seria ele?

Bilac, com todas as letras, abrindo o parágrafo, para maior destaque da revelação, escreve o nome de um respeitado e grave Conselheiro de Estado, amigo de José do Patrocínio: era o Barão de Paranapiacaba.

Foi a forma encontrada para mostrar ao bondoso diretor Patrocínio, qual era o comportamento de Émil Rouède e daqueles que aceitaram fazer parte do jogo da tradução.

Só que eles faziam brincadeiras, corriam atrás do dinheiro, mas eram boas pessoas. Foi assim que, em 13 de maio de 1888, ao saber que a Lei da Abolição havia sido assinada, Olavo Bilac, à frente de um grupo de estudantes do Largo de São Francisco, entra no botequim do chamado Mestre Moisés, nos arredores da Academia.

Depois de dar vivas à Princesa Isabel e a José do Patrocínio, grita ao dono do bar:

- “Abra todas as garrafas de bebidas que estão nas prateleiras!”.

Mestre Moisés era um baiano afável e sorridente. Deixou-se contagiar pela alegria dos estudantes e cumpriu a ordem. Em breve, o lugar se encheu de gritos, cantigas e alaridos. Os curiosos, que apenas espiavam pelas portas, foram convidados a ingressar e a participar da comemoração. A cerveja a espumar nos copos, discursos exaltados. Uma folia e um pandemônio.

À saída, não tendo com que pagar a despesa, Bilac se dirige a Mestre Moisés:

“Tudo isso corre por minha conta. Pago tudo. Depois eu volto!”.

Vai embora e nunca mais voltou para pagar.

Vinte e seis anos depois, Mestre Moisés vem ao Rio. Está pobre, passando dificuldades e resolve procurar o poeta.

- “Já não se lembra mais de mim?”, indaga a Bilac. “É natural. Já faz tanto tempo! Sou mestre Moisés, aquele de São Paulo, do tempo em que o doutor era estudante”.

- “Ah! Como não havia de lembrar? Lembro-me perfeitamente. Foi no seu bar que celebramos a Abolição. Por sinal que nesse dia bebemos tudo o que havia nas prateleiras!”.

Timidamente, mestre Moisés insinuou:

- “Beberam e não pagaram. Pândega de rapazes”. E numa desculpa:

- “Dívida velha. Sei que está prescrita”.

Mas Bilac:

- “As dívidas dos homens honestos não prescrevem!”

Fez questão de pagar a conta, vinte e seis anos depois.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 30 05 2025



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