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QUATROCENTÕES, SOFISTICADOS, MAS LEITORES
Acadêmico: José Renato Nalini
Tão sutil e elegante era Eduardo Prado, que temia ser considerado alguém especial: “Não se tolera mais a contradição; não se enxergam os lados vários de uma questão complexa; o pensamento deixa de ser instrumento dócil para a descoberta da verdade, porque acredita, sem exame, estar sempre na posse dela”

Quatrocentões, sofisticados, mas leitores

Eduardo Prado era um paulista de quatrocentos anos que sabia viver. Repartia o tempo bem aproveitado entre Paris, São Paulo e a famosa Fazenda Brejão, na região de São José do Rio Pardo.

Quem mereceu o privilégio de conhecê-la, atesta o capricho do fazendeiro ao formá-la com todos os requintes da civilização de que dispunha em Paris. Era o luxo parisiense em pleno sertão paulista.

Um dos convivas bem impressionados que teve condição de retratá-la foi Afonso Arinos de Mello Franco, no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, quando sucedeu a Eduardo Prado.

Quem chegava à fazenda era recebido com um bem elaborado medalhão: “Welcome to Brejão”. Uma aleia arborizada conduzia à casa grande, rodeada de inúmeras roseiras e coqueiros. O pomar dispunha de uma imensa coleção de árvores frutíferas tropicais e também de outros países.

A casa grande era um luxo bem europeu. Preciosidades do mundo inteiro: móveis de estilo, prataria, baixelas, coleção de porcelana chinesa e alemã, da Casa Meissen. Mais conhecida como Meissen Porzellan, é uma fábrica de porcelana sinônimo de qualidade e requinte, há mais de trezentos anos no mercado, pois começou em 1708.

No seu closet, uma profusão de vestes dos melhores estilistas, a lembrar o filme “Great Gatsby”, na primeira versão. Gravatas das melhores marcas, uma multiplicidade de camisas, blasers, paletós. Sem falar nas botas inglesas e italianas. Chapéus, perfumes e escovas. Enfim, um mostruário do que os milionários consumiam.

Todavia, a maior atração do Brejão era a rica biblioteca de livros luxuosamente encadernados em couro com dísticos dourados. Era o conjunto completo dos mestres das ciências duras e humanas.

Um dos hóspedes de Eduardo Prado, frequente comensal da família, embora visse livros de Goethe, Molière, Shakespeare, Racine, com obras completas, estranhou a ausência de literatura brasileira e sul-americana. Ao comentar com o anfitrião, este o levou a uma alcova interna, onde possuía, em encadernação amarela, todos os livros brasileiros até então publicados.

Era um quatrocentão amigo do luxo, mas não se privava do luxo maior, que é conhecer a literatura de sua pátria. Por que será que se tem a sensação de que a riqueza tupiniquim de nossos dias não se interessa tanto pelas letras?

De certa forma, Eduardo Prado intuía que sua existência coincidiria com o final de uma era. Aquela do bom gosto, dos gestos fidalgos, da finesse, do amor ao belo. Tanto que, cercado de pessoas elegantes, a partir de um criado pessoal verdadeiramente modelar, a quem Eduardo respeitava como raro e derradeiro exemplar de servidor leal e atento às necessidades do amo.

Tal era o respeito do patrão pelo criado que, ao receber os jornais do Brasil, numa fase em que não seriam edificantes os acontecimentos que aqui se desenrolavam, Eduardo Prado tratava de dar-lhes sumiço, com esta justificativa:

- “Tenho vergonha de Humphrys!” (esse era o nome do zeloso servidor que atendeu a Eduardo Prado durante os longos anos que viveu em Paris, na rua Casemir Perier). “Não quero que ele saiba o que se passa agora na terra do seu amo!”.

Hoje não há criados com as prendas e qualidades de Humphrys. Nem há patrões requintados como Eduardo Prado. O dinheiro mudou de mãos. Chegou a seres nem sempre afeiçoados às boas maneiras, menos ainda aos melhores sentimentos. Em compensação, o que tem acontecido nesta atormentada Terra de Santa Cruz recomenda a abstinência na leitura dos jornais e oitiva/audiência dos noticiários.

Tão sutil e elegante era Eduardo Prado, que temia ser considerado alguém especial. Comentou o receio com seu amigo Pedro Lessa: - “Esse fato marca sempre o início da decadência mental, a anquilose da inteligência. Não se tolera mais a contradição, torna-se impossível a investigação paciente, a observação perspicaz, o raciocínio seguro; não se enxergam os lados vários de uma questão complexa; o pensamento deixa de ser instrumento dócil para a descoberta da verdade, porque acredita, sem exame, estar sempre na posse dela”.

Será que isso ajuda a explicar a polarização em que se atolou o Brasil?

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 05 05 2025



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