|
||||
![]() | ||||
![]() Acadêmico: Rubens Barbosa Poucas vezes a conhecida observação de que ‘a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa’ foi tão apropriada.
Trump-Zelenski e o diálogo meliano O confronto entre os presidentes Donald Trump e Volodmir Zelenski na Casa Branca traz lembranças históricas e indica incertezas para o futuro. Ocorreu-me recordar um episódio – o diálogo meliano – registrado pelo historiador grego Tucídides na sua conhecida História da Guerra do Peloponeso, retratando o conflito entre Atenas e Esparta, ocorrido em (431 a.C.-404 a.C.). Melos, uma pequena ilha dórica no mar Egeu, optou por manter posição neutra na guerra. Atenas, visando a expandir seu império e a demonstrar seu poder, exigiu a submissão dos melianos. A negativa de Melos, baseada em princípios de justiça e na esperança de auxílio espartano, contrastava com a perspectiva implacável dos atenienses. Diante da recusa de Melos em se submeter, Atenas impôs sua vontade pela força: a cidade foi sitiada, seus homens executados e as mulheres e crianças tornadas como escravas. Na negociação entre Atenas e Melos, em 416 a.C., os representantes atenienses afirmam que “o justo nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem”. “Os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem”. “A decisão é mais quanto à própria salvação, evitando oferecer resistência diante do que é muito mais forte”. “Melos não tem possibilidade de resistir e deve submeter-se para evitar sua destruição”. “Nenhum povo considera bom apenas o que lhe agrada e justo o que serve aos seus interesses”. “O interesse próprio anda lado a lado com a segurança, enquanto é perigoso cultivar a justiça e a honra”. “Meras esperanças, relativas ao futuro, são insuficientes para justificar qualquer expectativa de sucesso levando em conta os recursos disponíveis, comparados com aqueles que existem contra”. “Os que agem como convém em relação aos mais fortes procedem corretamente”. “Os desejos fazem ver o irreal como se já estivesse acontecendo”. Por sua vez, os melianos, sustentando uma posição ética diante da opressão, argumentam que “a justiça deve prevalecer sobre a força” e que Esparta, sua aliada natural, virá em sua ajuda. Com isso, defenderam a legitimidade de sua neutralidade e a crença de que os deuses e a aliança com Esparta lhes favoreceria. “Para seus cidadãos, a amizade (com Atenas) é prova de fraqueza, o ódio (de Atenas) é uma demonstração de força”. “Ceder imediatamente é perder toda a esperança, mas a continuação da luta ainda poderá manter-nos de pé”. O diálogo meliano é um exemplo do realismo político, em que a força e o interesse próprio prevalecem sobre a moralidade e a justiça. A crueza da afirmação “os fortes exercem seu poder e os fracos se submetem” reflete uma visão cínica das relações internacionais, que segue sendo atual na política internacional e oferece, ainda hoje, elementos para uma reflexão profunda sobre a natureza do poder e os limites dos ideais de justiça em um mundo dominado pela força e pelo interesse de autonomia dos países. O episódio explicita o custo do uso da força e da brutalidade da guerra, bem como as limitações da justiça em um mundo dominado pelo mais forte. A negociação entre Atenas e Melos não só ilustra o realismo político já existente 400 anos antes de Cristo, mas também levanta questões universais sobre o poder, a justiça e a moralidade, temas que continuam a ser debatidos na política contemporânea. O diálogo enfatiza a ideia de que a justiça só existe entre iguais em poder e de que a realidade das relações internacionais é marcada pela dominação dos mais poderosos. Impressiona a atualidade da postura ateniense de pragmatismo no contexto da realpolitik nos dias de hoje, com o uso da força econômica e comercial para obter vantagens políticas. Tudo isso ficou exposto para o mundo na discussão acalorada no Salão Oval da Casa Branca, em frente às câmeras das televisões. “Você não tem cartas hoje para continuar a guerra”, “vocês vão perder o armamento que os EUA lhes fornecem”, a “Europa não tem condições de ajudar”. “Você tem de agradecer a vontade dos EUA em terminar a guerra, que vocês não têm condição de manter”, “sem os EUA você não tem nenhuma força”, foram algumas das afirmações de Trump, atualizando as frases do diálogo de Melos. “Mostraremos claramente que é para o benefício de nosso império, e também para a salvação de vossa cidade, que estamos aqui dirigindo-vos a palavra, pois nosso desejo é manter o domínio sobre vós sem problemas para nós, e ver-vos a salvo para a vantagem de ambos os lados”, em outras palavras, parafraseando os atenienses, vociferou Trump a Zelenski. O que aconteceu no Salão Oval – uma armadilha ao presidente ucraniano criada pelo presidente dos EUA e seu e vice – foi algo sem precedente nos 250 anos da história dos EUA. Poucas vezes a conhecida observação de que “a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” foi tão apropriada para descrever um diálogo sobre como terminar uma guerra. Se a política externa dos EUA se mantiver nos próximos anos, como explicitada no encontro – a ruptura do tratamento da Rússia como adversária dos últimos 60 anos e o distanciamento da Otan e da Europa – trará profundas transformações no cenário global e no próprio conceito de Ocidente. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 11 03 2025 ![]() ![]() |
||||
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562. |