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![]() | ||||
![]() Acadêmico: Gabriel Chalita Sem os sonhos, a prisão. A de fora e a de dentro. Como decidimos o que decidimos? E como recolhemos, depois, os pedaços que ficam nos caminhos?
A eternidade da dor Não pude não observar. Desde o início da missa, ela chorava. Um choro silencioso. Ao meu lado. Eu participava da missa tentando encontrar algum fazer que a acalmasse. Um olhar, apenas, poderia ser uma invasão. Há dores que são nossas e que nem sempre queremos compartilhar. Era a missa de quarta-feira de cinzas. O dia de nos lembrarmos de que somos nada. De que morreremos. Viemos do pó e, ao pó, voltaremos. Do lado de fora da Igreja, havia uma quaresmeira que poderia ser vista sem muito esforço. O roxo da penitência ornava o altar. Quando nos levantamos para a comunhão, eu abri espaço para que ela fosse primeiro. Ela sorriu entre lágrimas. E agradeceu. Senti que poderia me aproximar, ouvir, dizer. E fiz. A missa havia acabado e ela, de joelhos, ainda rezava. Ajoelhei, também. E esperei. E nos sentamos ao mesmo tempo. E, então, eu disse do bonito da oração. Ela concordou. Eu disse sem saber o que dizer, "Tudo passa". Ela foi doce, porém reticente ... "Será?". Eu quis recordar alguma tristeza recente que havia passado ou talvez presente, tristeza sempre há. A palavra foi dela: "A eternidade da dor". Senti que era preciso apenas ouvir e sentir junto. "Meu filho está preso, meu filho queria apenas ter importância, meu filho...". E mais não foi dito. Eu disse que o tempo era arrumador. Ela maneou a cabeça discordando. Eu discordei de mim mesmo e falei de uma amiga que, há não muito, havia enterrado o filho. Um acidente. Ela suspendeu o seu interminável pensar e quis saber da outra dor. Um acidente de moto. A velocidade e os seus perigos. Ela voltou a uma explicação cortada do cortado da sua alma, "Eles não fazem por mal, eles querem que alguém os veja". Filosofei um pouco, falando sobre a fugacidade da juventude e seus arroubos. O que querem os jovens? Existir? Se querem existir, por que tantos riscos? Ela concordava com a cabeça. Eu trouxe o seu pensar, "É verdade, querem ter importância, o seu filho e todos os filhos, todos nós, não é?". Ela falou um pouco mais. "O pai não quer saber dele. Desde que nos separamos. A mulher do pai tem ciúme. E ele não entende essa ausência". Eu apenas concordei, dando espaço para que as palavras dela conduzissem, para que suspendessem um pouco a opacidade daquela vida. Daquela vida sem alegria. "Um dia, ele ficou na rua olhando a janela onde mora o pai, chorando, chamando. Eles chamam, sabe?" Eu não podia exigir a história toda. Estávamos nos conhecendo ali. Achei invasivo perguntar o que o filho fez, o que o levou à prisão. Eu falei da complexidade das pessoas que nem sempre sabem o mal que fazem. Ela entendeu e disse que não tinha raiva do marido que se foi. "Eu que coloquei um fim, entende?" Murmurei alguma concordância. "Eu me apaixonei por outro, você sabe o que é isso? Eu não ia viver uma mentira, então, decidi." Via naquela recortada narrativa culpa de todos os lados. Não sei se ela estava ainda vivendo a outra paixão, não sei o tempo que passou da decisão, não sei quando o marido abandonado começou a outra história e tampouco sei por que a outra história decidiu por abandonar o filho. Sei que ela agradeceu a atenção. Eu ofereci alguma ajuda se precisasse. Ela disse que não. Que estava um pouco melhor e que era preciso agora paciência. Eu continuei. "E amor. Seu filho, precisa de muito amor para superar esse momento". Eu contei, antes de nos despedirmos, de um padre, na minha infância, que falava da eternidade das pedras. Que eu não sabia se estava certo ou não. Mas que eu gostava de pensar que muitos dos nossos problemas vêm e vão e as pedras continuam. E, também, quando morrermos, as pedras continuarão. Queremos tanto ter importância e erramos por isso. As pedras querem nada. E permanecem. Na testa da mulher, estava a cruz, feita pelo padre, com as cinzas. Na minha, também. A cruz é uma lembrança horizontal de que a dor nos é comum, e é uma lembrança vertical que podemos olhar para a alto, que devemos olhar para o alto. Depois do tempo da quaresma, vem a paixão, a morte. E, depois, vem o milagre da vida. A Páscoa. E, em todos os tempos, as pedras. E, em todos os tempos, os sonhos que veem nas pedras os caminhos e o descanso. Sem os sonhos, os jovens se perdem. Sem os sonhos, não há o descanso. E quem ensina as duas coisas? Quem compreende a dor das incompreensões? Sem os sonhos, a prisão. A de fora e a de dentro. Como decidimos o que decidimos? E como recolhemos, depois, os pedaços que ficam nos caminhos? Pedras nos ferem, mas nos ajudam na reconstrução. Que bom que pude observar e deixar alguns instantes de outros afazeres para ser um com aquela mulher. Na despedida, um abraço bom e um olhar de esperança. Sim, tudo passa. Publicado em O Dia, em 09 03 2025 ![]() ![]() |
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