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UMA ESQUINA, UM CARNAVAL
Acadêmico: Gabriel Chalita
O que não falta é a liberdade da memória em visitar tantas esquinas que, em um carnaval ou em outro dia qualquer, nos retiraram do chão e nos ofereceram danças que só permaneceram mágicas, porque deixaram de dançar.

Uma esquina, um carnaval

Ela estava com alguma fantasia de que não me lembro. Se eu ousasse dizer, seria uma invencionice da memória. É assim que fazemos com o que guardamos. Uma parte aconteceu. Outra parte aconteceu, mas não queremos lembrar. E outra queríamos que tivesse acontecido. E, se nos descuidarmos, contamos fazendo ser verdade o que verdade nunca foi.

A verdade é que ela estava em uma esquina com uma fantasia. Sim. Isso é verdade. E a verdade é que eu, preparado para um bloco na minha cidade de ontem, também estava fantasiado.

Os homens, no bloco da alegria, estavam vestidos de mulher. Ela me olhou e disse que eu estava ‘linda’. Lindo, eu corrigi. ‘Linda’, ela insistiu. E nos beijamos. E nos beijamos muito. E, depois, nos afastamos. Amigos de um e de outro exigiam a presença de um e de outro.

As ruas da minha cidade eram de paralelepípedo. Os instrumentos batiam o tempo do nosso andar, do nosso dançar. Eu olhava para os lados querendo a mulher da esquina, a mulher do beijo, dos beijos. Cidade pequena é fácil de saber quem é quem. “Ela estava fantasiada”, eu disse. E, então, não soube.

No fim da noite, eu perambulava de esquina em esquina em busca do beijo. Há instantes que não se repetem a não ser em nós mesmos.

Sonhei com ela Dei a ela um nome, uma história, um desejo. O desejo de um outro beijo. Acordei dizendo que, se a reencontrasse, deixaria outras possibilidades e seria dela.

Os dias passaram e, em uma comemoração na festa do padroeiro da cidade, alguém me apresentou o novo juiz, que havia chegado um pouco antes do carnaval. Ele e sua mulher. Nos olhamos. Ela, ao apertar minha mão, disse que já tínhamos nos encontrado.

Eu corei. Seria a mulher da esquina? Estava tão diferente. Sem a fantasia, era outra pessoa. Eu despistei da continuidade da conversa e quis saber do marido o sentimento do julgar. Tão jovem e com tantas responsabilidades. Ela olhava as minhas inseguranças e sorria como se pudesse dominar o meu sentir. Talvez, pudesse.

Quando o marido foi conversar com outras pessoas, eu quis perguntar se era ela. Esperei que ela dissesse. Disse nada. Contou de onde vieram. Das diferenças. Contou da casa em que estavam morando e que ficava em uma esquina. Uma esquina diz tanta coisa, foi o que eu pensei. Ela, então, falou do carnaval.

Eu perguntei se ela gostava de fantasias. João, que foi quem nos apresentou, desentendeu a pergunta. Pensou em algum atrevimento. Foi o que me disse depois. Eu queria saber se era ela. Não estava longe de mim, quando a beijei. Não havia bebido além do razoável. Fiquei longe de mim depois. Bebi a saudade do que nunca tive.

O marido, então, voltou e pegou na sua mão como se explicasse que eram um do outro. Pareciam diferentes aqueles dois. Ou era o que eu suponha sem nada saber. Se eu pudesse contar a alguém e se me perguntassem se era ela quem eu queria, eu diria que sim, desde que estivesse fantasiada. O olhar por detrás da máscara parecia mais sedutor. O beijo, com a máscara, tinha sabor de mistério. E a esquina, aquela esquina, os seus encantos.

É carnaval novamente. E, muitas vezes, voltei à cidade onde nasci. E, muitas vezes, passei por aquela esquina e lembrei daquele beijo.

O juiz e sua mulher não passaram tanto tempo na cidade. Nos vimos poucas vezes. E, depois, fui eu quem mudei. Quis contar a história de uma esquina, de um carnaval para a minha mulher. Somos casados há tantos anos, acho que ela não se importaria. Foi antes de tê-la conhecido. Mas não contei. Preferi agasalhar em mim aquele carnaval de uma juventude tão pouco duradoura.

Já inventei, muitas vezes, aquela mulher. E já confessei saudades. Já embaralhei em mim o que eu senti e o que eu imaginei ter sentido. O que sei é que gosto de carnaval e que gosto, também, da intimidade do beijo. Do beijo da minha mulher. Do que desejamos e realizamos. Tantos anos enlaçados.

Gosto do que ficou faltando, também. Sempre falta. O que não falta é a liberdade da memória em visitar tantas esquinas que, em um carnaval ou em outro dia qualquer, nos retiraram do chão e nos ofereceram danças que só permaneceram mágicas, porque deixaram de dançar.

Publicado em O Dia, em 02 03 2025



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