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A DOÇURA DO ADEUS
Acadêmico: Gabriel Chalita
O que quero, hoje, nesse sol amanhecendo, é a doçura do adeus. É a coragem de voltar a ser quem eu deixei de ser. 

A doçura do adeus

Faço a minha descrição para que saibam quem eu deixei de ser, quando deixei de ser. 

Conheci meu marido ainda menina, ainda nos dias em que dançava a delicadeza, em que desconhecia o horror dos barulhos. 

Eu era bailarina. Havia na cidade um aplauso de admiração ao que eu fazia nos palcos. Excursionava por outros lugares e pelos interiores de mim mesma e amava viver. 

Lia nos livros, compreendendo que os livros não nos ensinam a vida, fazem mais, aumentam a fome de vida. Lia outras bailarinas, outros passos, outras entregas para entregar arte. 

Eu tinha 20 anos quando nos vimos. Ele pareceu elegante o suficiente para dançar comigo um futuro de amor. Foi o que ele prometeu. Foi no que eu acreditei. 

Alguns dias antes do casamento, ele bateu em mim pela primeira vez. A dor do medo do ladrão de futuros foi mais forte do que o encostar incorreto das suas mãos. Ele chorou logo depois. Jurou jamais repetir. Justificou explicando o ciúme e o amor desmedido. Desmenti a minha racionalidade e aceitei prosseguir. Não havia tempo de fechar a porta. Os convidados já se preparavam para celebrar nossa felicidade. 

Casados, ele disse o quanto minha dança o incomodava. Queria filhos. Queria uma mulher para ele. Cedi. Também queria filhos. Também queria o seu corpo em mim. Eu era tensa, medrosa de seus rompantes, de suas alternâncias de humor. 

Tivemos filhos. Dois. E eu disse da falta que a dança me fazia. Ele disse que a escolha seria minha e que, partido,ele partiria. Chorou e eu acreditei e fizemos um amor que convenceu o meu corpo naquele instante. 

Os filhos foram crescendo e crescendo foram os seus sentimentos de indignação contra o pai. Meu marido já não escolhia os lugares desacompanhados para dizer indelicadezas a mim. As pessoas olhavam e não reagiam.

Meu filho mais velho um dia tentou agredir o pai depois de uma marca que ele encontrou em mim em um amanhecer. Há anos eu não amanhecia. E não dizia a ninguém as dores que obrigavam a noite a permanecer. 

Quando soube que os meus filhos sabiam, pensei no erro que foi suspender minha liberdade por ele. Por ele e pelos outros que acreditavam que éramos felizes. Eu não queria decepcionar a ninguém. Eu não queria pôr fim ao que eu jurei eternidade. Eterna é a natureza e foi nela que fui recobrar o que um dia fui.  Fui ver o nascer do sol que era lindo o suficiente para ser visto todos os dias. Fui ver o nascer do sol para desimpedir os meus olhos. 

Resolvi caminhar. Eu precisava. Caminhar horas, dias, anos para voltar ao mesmo lugar, ao lugar de antes, ao lugar onde eu amava estar. Resolvi caminhar sobre as folhas mortas caídas dos outonos. Em mim, havia um inverno interminável que impedia qualquer florescimento. 

Não. Não posso me esquecer do bom dos dias ruins. Tenho dois filhos. Os filhos nada têm dele. Estou certa disso. Os filhos repetem que não repetirão o pai. No início, eu desautorizava qualquer desautorização da parte deles do que era o pai. Era como se me culpasse por não agradecer ser uma mulher casada com um homem que me oferecia tudo. Vejam como me perco. Inacreditavelmente, sinto que ainda sinto que ele vai mudar e vai me oferecer o que um dia prometeu. 

O nascer do sol lindo parecia inteiro só para mim. Tive vontade de, vinte anos depois, dançar sozinha entre os sons da natureza que eram todos meus. Uma sensação de poderio. A natureza inteira minha. E o que quebrava o silêncio não impediria a dança. 

Meus filhos cobram de mim o fim. O fim da minha vida precisa ser reencontrado. O palco. A dança. A paz de saber que não serei agredida. 

Será que ainda dá tempo? Fiz quarenta anos. Não tenho a leveza de antes. Nem a pele desmarcada de cicatrizes. Se não disser o fim, não serão apenas cicatrizes. Serão novas feridas da força do seu físico e da fraqueza do seu caráter em ofender quem ele jura amar. 

O que quero, hoje, nesse sol amanhecendo, é a doçura do adeus. É a coragem de voltar a ser quem eu deixei de ser. 

Se eu não conseguir, por favor, compreendam, fui criada acreditando em não desistir. Perdoem-me, desistir é permanecer não amanhecendo.

Publicado em O Dia, em 23 02 2025



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