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O SILÊNCIO DAS PEDRAS
Acadêmico: Gabriel Chalita
Eu havia despertado antes. A casa silenciosa guardava o sono das pessoas que eu amava.

O silêncio das pedras

Eu havia despertado antes. A casa silenciosa guardava o sono das pessoas que eu amava.

Inaugurei o dia correndo pelas ruas da minha cidade. O sol, ainda tímido, aquecia a despedida da madrugada. Gosto de correr em silêncio. O silêncio também é feito de palavras. Sem palavras, não há pensamento.

Penso, enquanto corro, nas pessoas ausentes. Hoje é aniversário do meu pai. As palavras não têm o poder de trazer as pessoas de volta. A dor, na memória, se sente em palavras. O sorriso, também. Enquanto corro, converso com o tempo em que meu pai estava. E uma felicidade bonita desmente a dor. A lembrança do meu pai reflete sol nas casas que vejo, enquanto corro.

Passo por uma ponte antiga. Vejo o rio e, ao longe, a montanha. O nascer do dia é uma explosão de belezas. Ouço o cantar dos passarinhos, o acordar das flores, o barulhar dos ventos levando as nuvens para que o sol possa iluminar o novo. O novo dia.

Correr faz bem para o corpo e para o silêncio vasculhador das memórias. Olho, vez em quando, para o alto. Penso nos dissabores do dia anterior. Homens da minha cidade com dizeres perversos.  Conheço bem um deles, rastejante da vida. Foi ele que um dia atirou infâmias em mim. Hoje, sorve as amarguras do caminhar incorreto. Lamento pelo mutismo dos outros. O silêncio, nessas situações, deveria ficar para as pedras.

Quando estou presente, não autorizo o rebaixamento de ninguém. Tenho horror aos preconceitos. Tenho horror às brincadeiras vulgares, quando o outro é o objeto do brincar. Palavras fracas e descuidadas machucam muita gente.

Prossigo a corrida. Passo por um velho pontilhão por onde o trem passava. O barulho do trem também é palavra na minha memória. Os cuidados que deveriam ser tomados para evitar atropelamentos. Os aprendizados das chegadas e das partidas. As palavras que dizem adeus enternecem a alma.

Volto ao meu pai e ao seu contrato com a gentileza. Sou fruto do seu plantio e corro para não descuidar do cuidado essencial de amar as pessoas. Um dia, não correrei mais. Um dia, as palavras que brotam de mim serão terra. E, quem sabe, germinarão bons sentimentos no mundo. É o meu modesto pensar. O que deixamos por aqui, quando o aqui prosseguirá sem nós?

Pensar na finitude do que se conhece não é desrespeitoso com o dia no seu nascer. É saber que há mortes e nascimentos todos os dias. De novo, o trem. De novo, meu pai. De novo, o pensar nos que sujam. De novo, a decisão de não sujar.

Termino a corrida e sento diante do rio que fica não muito longe de onde moro. Sento e encosto o meu cansaço. Na pedra grande que sinto desde a minha infância. Tantos correm e param e ela prossegue. Prossegue no nascer e no despedir de cada dia. Encosto na pedra e veja uma outra não muito longe. E olho o azul lindo de um céu de verão. A lua, ontem, estava cheia. Penso no luar refletindo a noite nas pedras, no silêncio das pedras. É dia.

É dia de voltar para casa e tomar café com as pessoas que eu amo. É dia de dizer palavras nascidas dos silêncios, palavras escolhidas para dizer sentimentos. Eu nunca economizei no amar e no dizer amor ao meu pai. Sinto que ele sente o quanto ele prossegue em mim. Sinto em palavras, em palavras que aconchegam a saudade e que acalmam as dúvidas. Até as pedras sabem que não terminamos por aqui.

Publicado em O Dia, em 17 11 2024



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