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RENATO CÔRTE REAL: 100 ANOS
Acadêmico: José Renato Nalini
Era aquele humor inteligente, que foi substituído pelo escracho e pela excessiva utilização de expressões de mau gosto. Não sabendo exercer a veia humorística sem se afastar da elegância, abusa-se do chulo, do vulgar e daquilo que é, em essência, exteriorização do feio

Renato Côrte Real: 100 anos

O Brasil desmemoriado cultua o presente fugaz. Descuida-se do passado. Esquece pessoas que influenciaram toda uma época. É o caso de Renato Côrte Real, que nasceu em Campinas, em 6 de outubro de 1924. Nesse dia, no ano que nos foi dado viver, 2024, celebrou-se, na quietude e desapercebido, o seu centenário.

Os que tiveram a alegria de assisti-lo na televisão que engatinhava, não se esquecem de sua versatilidade e talento. Era aquele humor inteligente, que foi substituído pelo escracho e pela excessiva utilização de expressões de mau gosto. Não sabendo exercer a veia humorística sem se afastar da elegância, abusa-se do chulo, do vulgar e daquilo que é, em essência, exteriorização do feio.

A vida artística de Renato Côrte Real é conhecida por quem se der ao trabalho de pesquisar na internet. Foi na década de 1950, na primeira infância da televisão, que ele se fez notar. Participou de um programa de calouros e imitou uma garota-propaganda. Foi o suficiente para ingressar no rol dos artistas profissionais capazes de entreter plateias e auditórios, por causa de seu humor fino e sedutor.

Quem não se lembra do programa “Papai Sabe Nada”, que era um contraponto à conhecida série americana “Papai Sabe Tudo”? Encarnava personagens bem distintos, cada qual com suas peculiaridades, que só alguém predestinado a empolgar multidões conseguiria interpretar.

Foi assim que atuou no “Grande Show União”, em “Corte Rayol Show”, “Alegria 81?, “Alô Brasil, Aquele Abraço”. Foi amigo de Jô Soares, esta outra criatura dos mil caracteres engraçados, personagem presente em todos os lares brasileiros durante décadas, e cuja partida provocou um vazio impreenchível na arte humorística de nosso País. Com Jô, atuou em “Faça Humor, Não Faça a Guerra” e “Satiricon”.

Renato Côrte Real era uma usina de criatividade. Assim foi com o quadro humorístico “Epitáfio e Santinha”, estrelado por ele e Nair Bello, outra mulher extraordinária, cuja mera aparição em cena causava riso espontâneo. Por sinal, ela não reprimia o riso, pois encarnava as personagens com tanto amor e devoção, que antes mesmo do despertar das gargalhadas, estava ela mesma a explodir. A dupla “Epitáfio e Santinha” surgiu no programa “Grande Show União”, em 1961, na TV Record. A inspiração foi a prestigiada história em quadrinhos, “Pafúncio e Marocas”, mas incrementada pelos inigualáveis dons de Nair Bello e Renato Côrte Real.

Um humor atemporal, tanto que retornou ao entretenimento televisivo, agora no “Zorra Total” da TV Globo, com o papel de Renato agora interpretado por Rogério Cardoso.

Outra cena inesquecível era o quadro em que Renato Côrte Real fazia o papel de um presidiário que, periodicamente, recebia sua mulher. Uma figura caricata, cujo papel sua esposa, na vida real, aceitou interpretar. O bordão que se tornou famoso no Brasil era a resposta que Renato dava ao carcereiro “Nérso”, desempenhado pelo ator Nelson Turini: quando este dizia que a esposa queria visitá-lo na prisão, Renato retrucava: “Diga a ela que eu saí”.

A fase gloriosa da televisão brasileira contou com a participação ativa de Renato Côrte Real na programação que reproduzia o teatro amador, os esquetes que as escolas ofereciam a seus alunos como instrumento de aprendizado, tudo ainda revestindo uma ingenuidade do brasileiro simples. Daquela inexata compreensão do que deveria ser o “homem cordial”, que Sérgio Buarque de Holanda explorou em “Raízes do Brasil”.

Assim a sua atuação como pioneiro do SBT, do Sílvio Santos que também já foi e participação no primeiro programa humorístico do recém-criado canal, o “Reapertura”.

Renato Côrte Real poderia ter vivido mais. Morreu precocemente, aos cinquenta e sete anos, em 9 de maio de 1982, vítima de câncer no fígado e pâncreas. Foi sepultado no Cemitério da Saudade, em sua terra natal, a cosmopolita Campinas.

Colecionou inúmeros troféus, como o Roquette Pinto, em 1963, como melhor teleator humorístico em 1963. Quem tiver curiosidade e perscrutar o acervo que a internet hoje abriga, encontrará muitas passagens engraçadíssimas de Renato Côrte Real, como o quadro ”Sigismundo Fraude”, uma caricatura de Sigmund Freud, principalmente durante sua permanência na Globo, que teve início em 1969, com “Alô Brasil, aquele abraço”. Nos já mencionados programas “Faça Humor, Não Faça Guerra”, em 1970 e em “Satiricon”, de 1973, não só interpretava os personagens, como era o redator de todos os textos.

Renato legou sua herança artística para o filho Ricardo Côrte Real, que iniciou na TV aos dez anos, em 1962, no “Papai Sabe Nada”, com o personagem “Sócrates”, a inteligência da família. O compromisso é que tirasse boas notas na escola. Ricardo também é versátil, praticando também a música, em conjuntos que privilegiam os blues.

O humor brasileiro se empobreceu com a partida de Renato Côrte Real, cuja memória é preservada por aqueles privilegiados que assistiram a múltipla e bem elaborada edificação humorística, que só durou três curtas décadas.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 13 11 2024



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