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Acadêmico: Gabriel Chalita O meu quarto em silêncio é o melhor lugar do mundo. Do mundo que conheço.
O público e o quarto Ele comunicou do almoço com os dois companheiros que detesto. Detesto porque eles aplaudem os exageros e o mau gosto na escolha das palavras. Detesto porque eles riem do que não merece riso. Detesto porque ainda cultivo, em algum recôndito, a polidez. Júnior é tudo em excesso. E, com os excessos, as mentiras. E, com os excessos, a reprovação para mim que não confirmo. Aceitei casamento com o homem errado. São quase vinte anos de um barulho que não desliga. Quando nos conhecemos, eu tive dúvidas. A dúvida de não prosseguir em casa, eu não tinha. Queria distância do meu pai, por razões que me doem. Culpei minha mãe pelo casamento preenchido por um cotidiano de subserviências. Foi ela quem intercedeu por Júnior, dizendo que era hora de eu viver minha história. Condeno a mim mesma por não ter reagido, por não ter dito que uma história não depende de casamento. No público, nos inícios, ele parecia aprazível. Aos olhos dos outros, aos meus, a desconfiança. Desconfio de quem fala alto demais. Disse à minha mãe que o pior não é o público, é o quarto. Eu ainda não sei o que é o prazer. Ele é tão confiante de si que é como se eu não existisse. Começa dizendo o que fazer. Conta vantagens que não se concretizam. Em mim, fica pouco, o que é um sinal de alívios. Minha mãe ouviu, ouviu distante. Nunca me esqueço do dia em que sua irmã, minha tia, disse que meu pai tinha uma amante. Na cozinha, enquanto minha mãe separava o feijão das sujeiras, ela sorriu. Elas falavam baixo, mas eu ouvi. E vi o sorriso de minha mãe. Era como se isso a desobrigasse de tarefas indesejadas no quarto. Eu sonhei com um homem romântico, com um homem que entendesse o meu corpo de mulher, com um homem que tivesse a delicadeza e a compreensão do meu tempo. Vou fazer almoço. Vou aguentar os gracejos vulgares. Ele gosta de dizer que eu sou uma mulher satisfeita com o homem que tenho. Na última vez que estiveram aqui, ele disse que eu era gulosa. E deu uma gargalhada indelicada. Com a boca cheia de resíduos de comida. E ainda explicou que estava falando de quarto. Disse que eu corava, quando ele dizia, mas que estava em família. Quando passei para pegar mais cerveja para ele, ele deu um tapa na minha bunda e disse: "É minha". O quarto, sem ele, é meu lugar preferido. No quarto, manifesto a mim mesma o sonho do desenraizamento. Do dia em que conseguirei quebrar a corrente que, há tempos, atormenta as mulheres da minha família. Um dia, minha mãe disse que eu tivesse paciência. Ao menos, ele não batia em mim. Não entendi se era uma partilha do que ela passava ou se ela se referia à minha avó, que tinha marcas de dor no corpo. Eu falei das dores da alma. Da interioridade. Do que ia se desmantelando dentro de mim. As palavras também doem. As atitudes grotescas sujam os dias, sujam a vida. Sonhei tanto uma vida simples, mas uma vida romântica. Sonhei um prazer que lia nos livros, que ouvia nas conversas de amigas da faculdade. Sonhei um homem que fosse delicado. Que brincasse com os meus cabelos antes de penetrar o meu corpo. Não sonhei com pesadelos. O peso da decisão ainda não me deixa partir. Queria ser livre como Joana, amiga mais próxima, que arrumou as coisas e a vida. E se foi. Preciso deixar de divagações e decidir a sobremesa. Júnior gosta de pudim de claras. É melhor eu ver se tenho os ovos e o restante ou se preciso ir às compras. O bom é que o ruim não dura para sempre. À noite, quem sabe, ele resolva sair com eles, e eu possa abraçar os silêncios. O meu quarto em silêncio é o melhor lugar do mundo. Do mundo que conheço. Minha mãe é outra, depois que enviuvou. O tempo arruma as coisas. Publicado em O Dia, em 10 11 2024 voltar |
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