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O DIZER DAS VOZES
Acadêmico: Gabriel Chalita
E fui dizendo vozes que plantasse alguma esperança. Nenhum ódio, em nenhum lugar, construiu tempos de paz.

O dizer das vozes

Estávamos sentados, quando o comandante comunicou que a manutenção havia pedido mais alguns minutos para compreender de algum sinal que alertava que não poderíamos iniciar o voo. Cada um prosseguiu com o seu fazer. Eu lia um livro.

Passados os minutos, ele explicou que se tratava de um pequeno amassado no motor, que não comprometia a segurança da aeronave e que, em poucos instantes, iríamos partir.

Uma senhora veio do meio do avião sôfrega, pedindo ao comissário para sair. Disse que estava com uma intuição ruim. Que não ia voar com motor amassado. Ela não falava com a voz alta, mas os que estavam na frente, como eu, ouviram. O comissário perguntou se ela havia despachado a bagagem. Ela disse que sim. Fotografou o bilhete para que localizassem, na carga. O procedimento atrasaria um pouco mais a partida.

Uma senhora, do lado oposto ao meu, disse ao comissário que, talvez, também quisesse descer. Um senhor, ao seu lado, também mostrou dúvida de permanecer ou não no voo. Então, uma outra senhora, sentada logo atrás da minha poltrona, perguntou a mim se eu não estava receoso. Eu disse que não. Ela perguntou se eu não tinha ouvido a intuição da mulher. Eu falei que acreditava mais na intuição do comandante e no preparo da equipe de segurança da companhia.

Foi, então, que eles se acalmaram. A porta se fechou e o avião começou a taxiar para nos levar ao nosso destino. O senhor que estava ao meu lado disse que não tinha medo. E exibiu uma Bíblia em seus guardados.

A comissária agradeceu minha fala serena, dizendo que, quando uma voz traz medo, outras acompanham. Em contrapartida, uma voz segura também encontra eco. Voltei ao livro.

O senhor que estava ao meu lado quis saber o que eu estava lendo e eu disse. Pouco tempo depois, diante do celular, ele ria com euforia. Um pouco alto, inclusive. Ele viu o meu olhar e explicou:

"São vídeos de bandidos que se deram mal. Eu adoro. Quer ver?"

Eu não havia entendido muito bem. Ele percebeu e foi sendo mais didático.

"Esse daqui não estava armado, mas fez que estava, disse que era um assalto. O do banco de trás estava armado e descarregou a arma na cabeça dele. É muito divertido ver o bandido caindo da moto, no chão, morto."

Eu olhei para ele e só repeti uma das palavras, em tom de pergunta, "Divertido?".

Ele não se conteve. "Eu adoro, tem vários aqui, quer ver?". Eu disse que não e agradeci. Ele viu meu incômodo e sorriu em tom de deboche dizendo que esperava que eu não fosse um dos que defendem bandidos. Que ele tinha muito ódio.

Eu disse que não queria entrar em detalhes mais complexos em um voo tão curto, mas que ouvir de alguém que se divertia em ver pessoas morrendo causava uma certa estranheza.

Ele insistia perguntando, se alguém me assaltasse o que eu faria, se eu, por acaso, convidaria para um chá. E ria de si mesmo. Eu não ria.
Pelo contrário. Uma tristeza ia dizendo em mim que essas vozes vão ganhando forças.
 
Evidentemente, eu sentiria raiva se alguém me assaltasse. Aliás, já senti, já fui assaltado. A raiva daqueles instantes nunca foi definidora das ações que vieram depois, das ações da minha vida.

Eu, incomodado, quis ajudar. Falei da Bíblia e ele pareceu gostar. Em tom leve, disse das histórias de fé, de ensinamento que preenchem o Antigo e o Novo Testamento. Ele acenou com a cabeça concordando. O livro que eu estava lendo era um estudo sobre as parábolas de Jesus. Perguntei qual delas era mais tocante para ele. Só o fato de ele deixar de ver os vídeos e prestar atenção já me trazia alguma esperança. Ele respondeu que carregava a Bíblia com ele, mas que não tinha o hábito de ler.
 
Eu, então, incentivei que lesse. Ele pareceu gostar da conversa e perguntou se deveria ler do início. Eu disse que não. Que começasse pelas Cartas de São João. E fui dizendo um caminho possível de ser seguido. Ele quis saber mais. Eu falei de duas ou três parábolas. E ele ouviu.
 
O avião pousou em segurança. Ele se despediu de mim falando que não é que se divertia vendo os vídeos, é que a violência estava excessiva. Eu ouvi. E fui dizendo vozes que plantasse alguma esperança. Nenhum ódio, em nenhum lugar, construiu tempos de paz.

Publicado em O Dia, em 03 11 2024



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