Compartilhe
Tamanho da fonte


DESTRUIR REPUTAÇÕES
Acadêmico: José Renato Nalini
Cruel ele foi ao chamar Machado de Assis de “brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana, que constitui o tipo diferencial da nossa etnografia”. Mereceu a resposta superior de Lafayette: “Qual é a raça horizontalmente americana de que a do sr. Machado de Assis é a sub-raça? Não haverá também uma sobre-raça?”

Destruir reputações

O que explica a fúria com que pessoas de talento se dediquem à tarefa de destruir reputações?

O tema está na ordem do dia, porque as campanhas eleitorais impedem os bons candidatos de anunciarem os seus projetos para os municípios, convertendo o cenário dos debates em ringues de luta-livre com golpes baixos.

Mas isso não começou agora e já envolveu luminares da literatura e do direito. Há episódios célebres na História do Brasil, um dos mais conhecidos, é a crítica de Silvio Romero contra Machado de Assis.

Amargo e mordaz, chegou Romero a publicar um livro com trezentas páginas, cujo único fito era derruir o autor de “Memórias Póstumas de Braz Cubas”. O crítico sergipano era menos respeitado do que temido. Seu ardor combativo, sua coragem ao atacar, o tornavam figura aterradora, da qual presumíveis vítimas queriam se distanciar e serem por ele ignoradas.

O “bruxo do Cosme Velho” não era um lutador indômito. Retraído, gago, discreto e classe média-baixa, não se destacava por rompantes ou por arrojo. Foi preciso que Lafayette Rodrigues Pereira saísse em sua defesa.

Hoje é possível afirmar que Lafayette venceu. Não apenas porque defendia boa causa. Mas porque se pautou como sempre o fez em sua profícua existência: posicionou-se ao lado da Justiça.

Ao introduzir a publicação completa dos artigos que Lafayette elaborou em defesa de Machado, Mário Mattos reconhece: “ambos os contendores estavam animados do desejo da verdade, daquilo que supunham fosse a verdade”. Só que porfilhavam em lados contrários: “No fundo, era a eterna luta dos subjetivos contra os observadores, a saber, do espírito exuberante contra o espírito experimental. Do impulsivo contra o fleumático”.

A vitória sempre ou quase sempre vai preferir o fleumático. Parece que Romero, com a idade e a meditação que lhe fazem companhia, retificou o juízo apressado a respeito de Machado. Reviu sua contundência e procedeu da mesma forma em relação a Luiz Delfino e a Francisco Otaviano.

Completa Mário Mattos: “a vida, como estilo irremovível, ensinou-lhe a viver dentro dela, isto é, a ser veraz, equânime, condicionador, o que tudo quer dizer que lhe mostrou a existência do mundo exterior e que o exagero é a pior deformação”.

O exagero sempre leva a danos. Quase sempre recíprocos. Fere o alvo, mas lesiona também o ofensor.

No episódio que envolveu a pesada catilinária de Silvio Romero contra Machado de Assis, assim que Lafayette publicou o primeiro artigo em defesa do fundador da Academia Paulista de Letras, o autor do libelo acusou o golpe. Em nota ao prefácio da segunda edição dos Estudos Jurídicos de Tobias Barreto, Silvio Romero abusa, novamente, do vocabulário. Alude a “miserável e torpe covarde que escreveu contra mim umas infâmias e imundas sandices”. E continua: “A este desgraçado cultor do pode ser que sim e pode ser que não, vulgarizador do rabinismo de Granada, ...não respondi por o achar muito abaixo da crítica”.

Ora, o tom utilizado por Silvio Romero é apropriado índice do abalo, da perturbação e do atordoamento que o artigo de Lafayette produziu no seu ânimo. Responder com insulto é confissão de derrota.

Cruel ele foi ao chamar Machado de Assis de “brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana, que constitui o tipo diferencial da nossa etnografia”. Mereceu a resposta superior de Lafayette: “Qual é a raça horizontalmente americana de que a do sr. Machado de Assis é a sub-raça? Não haverá também uma sobre-raça?”.

Cobra Lafayette as explicações que não foram oferecidas por Silvio Romero: “Mas, afinal, para ser entendido, o sr. Romero, que ama as digressões, ainda para narrar a gênese das roscas e retortas do seu pensamento..., devia nos dizer quais os caracteres do espírito e do coração dessa sub-raça: É a força ou a fraqueza? É a atividade ou a inércia? É a audácia ou a covardia? É a lealdade ou a perfídia? É a tendência para o real ou o amor da quimera? É uma sensibilidade exagerada, uma imaginação doentia?”.

Lafayette, o jurisconsulto, superou em elegância e correção o frustrado intuito de Silvio Romero tisnar a glória de Machado. A vocação de Silvio Romero foi a de “agredir, atacar, abocanhar os talentos mais peregrinos, as inteligências mais excelentes do nosso país”, afirma Lafayette. Romero pretendeu ferir José Bonifácio, Cotegipe, Paranhos, Francisco Octaviano, Silveira Martins, Magalhães, Porto Alegre, Paranapiacaba, L.P. Barreto e tantos outros”. Dele se dizia: “É a hidra a morder o granito”.

Machado cresce a cada ano que passa. Sirva de lição aos detratores levianos. O ladrar dos cães não é capaz de ofuscar o brilho verdadeiro.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 23 10 2024



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.