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Acadêmico: Gabriel Chalita Gosto do barulho de chuva. E gosto de saber que ela traz alívios. O desamar também traz alívios.
Desamar Você, hoje, não disse nada. Só silêncios. Já eu, amanheci falante. Reclamei com coragem, porque, a mim, não falta coragem para reclamar. Veja as circunstâncias em que me encontro. Dona Anete mais falta do que vem e tenho disposição nenhuma para uma conversa mais detalhada sobre as responsabilidades éticas de quem se dispõe a cuidar de um idoso. Os livros que tenho, e que não são poucos, já os trocaram tanto de lugar que não encontro o lugar onde deveriam estar. Confesso, só para você, para que não me entendam necessitado de mais remédios, porque é isto que nos fazem, nos entopem de remédios. Cada um com sua função. Sendo que a principal função de cada um é evitar os estragos do outro. É disso que se trata. Se um é para o fígado, pode trazer consequências ao coração que, naturalmente, exige um outro e que pode atacar o estômago, então, um outro. E assim a procissão dos remédios vai entrando em mim. Acabei em divagações, agora tem sido assim, vou dizer alguma coisa e essa coisa puxa uma outra e demoro a voltar para a coisa inicial que eu queria dizer. Lembrei. Falava da procura dos livros. O que ocorre é que, no decorrer da procura, não poucas vezes, esqueço o livro que eu procurava. Como disse, só digo isso a você. Senão teimam em dizer que não tenho condições de cuidar de mim e inventam internações ou, na melhor das hipóteses, mais remédios. Você acha um problema de grandes proporções esquecer o nome do livro que se está procurando? Você está aí? Por que ainda não se manifestou? Não faz tanto tempo assim que a chuva veio. Gosto do barulho de chuva. E gosto de saber que ela traz alívios. O desamar também traz alívios. Você se lembra da Maysa, não é? Lembra, sim. Eu já falei algumas vezes sobre ela. Como foi difícil o desamar. Como foi difícil separar o que existiu do que existiu somente em mim. Memórias que construiu, me disseram. Éramos jovens e nos apaixonamos. Certamente, nos apaixonamos. E vivemos o tempo das esperas. Naquele tempo, as coisas não eram tão rápidas. Ela dizia nada, quando eu dizia os sentimentos. Timidez, talvez. Excesso de cautela. Maysa era linda. Olhos obtusos, quase orientais. Cabelos sempre molhados, cheirando a novidade. Não era alta. Era da altura que me cabia compreender que cabíamos um na vida do outro. Ela morava aqui em frente, você se lembra disso, eu já disse. E, um dia, as circunstâncias fizeram com que ela se casasse com um outro. Eu nunca acreditei naqueles dois. Não faziam laço. Não enfeitavam as ruas por onde passavam. Eu sabia que não duraria muito e vivi, novamente, o tempo das esperas. Você acredita que um dos filhos recebeu o nome de um dos meus irmãos? Isso diz muito. Os nossos olhos se cruzaram, não poucas vezes, e ela sempre cerimoniosa escondendo, certamente, um vulcão dentro dela. Um vulcão pronto para dar um basta àquela vida com aquele marido. Contra todas as minhas intuições, ela morreu antes dele. Vez em quando, ele vinha conversar comigo sobre os livros que estávamos lendo. Era como se ele soubesse que o grande amor daquela mulher havia sido eu e não ele. Ah, você está aí, finalmente. Eu sabia. E está caindo mais lentamente. Está desacreditando do que estou dizendo, eu sei. É sempre assim, quando cai nessa velocidade. Desdiz o que eu digo. José Luiz, o único amigo que restou, sim, porque as pessoas morrem, também não acredita que ela, em algum momento da vida, tenha pensado em mim. Eu não discuto com ele, aliás, porque ele não ouve praticamente nada. Eu já disse que há aparelhos muito bem feitos para a surdez, mas ele não ouve. Você está me ouvindo? Eu não tive disposição para ir até a padaria. Esquentei o pão que tinha, quando percebi que Dona Anete mais uma vez faltou. Vamos ver o que ela dirá na sexta-feira. Eu fingirei acreditar como você finge acreditar em mim, eu sei. Gosto, quando ficamos apenas nós dois. Às vezes, você desce com mais força; às vezes, com menos força. Às vezes, com mais volume; outras, com volume quase nenhum. Gosto de trocar a vasilha, quando ela está cheia da água que vem de você. José Luiz disse que eu tenho que consertar você. Dona Anete, também. Eu ouço o que eles dizem e digo que “sim” e faço o que quero. Quero você comigo. Nesse entardecer entre livros e lembranças. Quando os tempos ficam secos, você silencia. E, então, fico só. Quando chove e você volta, eu volto a ter vontade de contar o que eu vivi. E os livros de amor que eu li. Sempre gostei dos finais felizes. Sou dos que choram mais de emoção do que de tristeza. No sepultamento de Maysa, eu estava. Com um terno também escuro como escuro era o terno do tal marido. Nos olhamos no caixão. Era como se ela dissesse 'que pena, era de você que eu gostaria de enviuvar'. Um dia desses, uma barata apareceu por aqui. Olhou o que caía de você. Ouviu, talvez. E se foi, E nada mais. Dizem que a solidão dói a alma. Eu não quero remédios. Eu quero você gotejando companhia em mim. Continue, por favor. Até que eu possa dormir. Publicado em O Dia, em 20 10 2024 voltar |
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