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DIA DO PROFESSOR É OUTRO
Acadêmico: José de Souza Martins
O magistério, no Brasil, não é uma profissão salubre. Quem opta por ela sabe que é uma vida de sacrifícios e de privações, a maior das quais é a da falta de respeito por parte dos que do nosso trabalho se beneficiam.

Dia do Professor é outro

Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Hoje é o dia dos Professores. Sou professor desde quando estava terminando o Curso Normal, o curso de professores primários, numa escola pública. Fui motivado a ir para o magistério já nos dois últimos anos do curso primário, na periferia, quando morava na roça. Entre ida e volta, meu irmão e eu caminhávamos 16 quilômetros por dia para ouvir as aulas de jovens professores dedicados que vinham de trem de São Paulo.

Era adotado o livro didático de Rafael Grisi, Uma História e, depois, Outras. O texto era bem escrito e me motivava a ler tudo que me caísse nas mãos.
Quando fiz o curso de licenciatura em Ciências Sociais, na USP, para meu grande espanto, o professor de didática especial entrou na classe e se apresentou: Rafael Grisi.

Tive o privilégio de ser aluno da escola primária renovada em decorrência da criação da USP, que formava professores secundários normalistas destinados a formar professores para as escolas primárias.

Por esse meio, a missão civilizadora da Universidade chegava até os confins, até crianças que, como eu, iam descalças à escola, os pés sujos e, no inverno, enregelados, calça curta, camisa de manga curta, sem abrigo. Só fui ter uma blusa quando um colega de escola, ele também da roça, me inscreveu na lista das crianças que receberiam roupas no Natal, dadas pela família do maior fazendeiro da região, criador de gado e senhor de gente.

Em casa, a comida diária era arroz, feijão e repolho cru temperado com sumo de limão vinagre. Eventualmente, no caminho da escola, logo de manhã, uma velha, caseira de uma chácara, como nós, me esperava. Contava o sonho que tivera naquela noite e me dava um tostão, dez centavos, para que eu fizesse por ela, no chalé do jogo do bicho, da rua da estação, a aposta.

O apontador interpretava o sonho, nele decifrava o bicho correspondente e emitia um papelzinho com o respectivo número. Só lembro que, se o sonho tivesse sido com moleque travesso, o número era o 17, do macaco.

Ela nunca ganhou um centavo. Procurava compensar-me pelo favor e me dava um lanche feito de pão duro e salame rançoso. Soube depois que meu lanche era feito com alimentos catados no lixo do Mercado da rua Cantareira, com que ela sustentava a família.

Carne, em casa, era eventualmente carne de caça, como ouriço, uma carne escura e malcheirosa.

Carne mesmo, só nos três dias da centenária festa de Santa Cruz, em maio, a festa dos antigos aldeamentos indígenas dos arredores de São Paulo, instituída pelos jesuítas. O fazendeiro mandava matar um boi e distribuía carne ao pé de um braseiro, para churrasqueá-la ao lado da capela.

Tenho até hoje uma estranha forme de carne. A fome não é o que os acadêmicos dizem em seus estudos e conferências, como se fosse mero assunto econômico. Nos que a sofreram na infância, ela gruda na alma para sempre. É uma fome insaciável, mesmo de quem come regularmente. Ainda hoje, sinto fome de carne, nas horas e nos lugares mais estranhos, como uma alucinação.

Ainda no Curso Normal, iniciei-me como professor num curso de madureza, um supletivo. Meus alunos eram adultos gente que trabalhava de dia e estudava à noite. Tornei-me professor na USP em 1965 e nela lecionei durante 38 anos. Sou feliz pelos muitíssimos que aprenderam comigo o que eu sabia.

Como professor também tive grandes desapontamentos. O magistério, no Brasil, não é uma profissão salubre. Quem opta por ela sabe que é uma vida de sacrifícios e de privações, a maior das quais é a da falta de respeito por parte dos que do nosso trabalho se beneficiam.

Aqui, de certo modo, é a profissão da vingança da civilização contra a barbárie. O oposto do que acontece no Japão, em que o professor se doa ao país nos alunos que forma. Em que o Imperador curva a cabeça ao professor em sinal de respeito e gratidão.

Por favor, nada de hipocrisia. Nada de maçã na mesa do professor. E, sim, a lição-de-casa bem-feita. Não como obrigação e castigo, mas como prova de reconhecimento de nossa dedicação ao outro.

O magistério é um ato de amor incondicional.

A mais significativa recompensa que recebi foi um convite do cacique de uma tribo do sertão do Mato Grosso. Depois de uma palestra que fiz para algumas dezenas de chefes indígenas no salão de uma chácara da Arquidiocese de Goiânia, ele me procurou. Disse-me que seu povo procurava um professor igualzinho a mim. Eles construiriam a escola para eu morar e ensinar seus filhos. As mães fariam a roça e os pais e tios caçariam por mim, para eu ter o que comer e poder me dedicar exclusivamente ao ensino.

Infelizmente, não tive condições de aceitar. Era prisioneiro do matagal inóspito da Cidade Universitária.

Na próxima vez, depois do sabático que nunca tive, quando voltar do firmamento, quero ser professor de novo, para ensinar melhor e aprender mais.
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Publicado no Jornal da USP, em 15 10 2024



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