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MULTIPLICADOR DE AMEAÇAS
Acadêmico: José Renato Nalini
Os prognósticos são sombrios: quase duzentos milhões de pessoas em apenas três regiões do planeta se tornarão migrantes climáticos – prefiro “refugiados climáticos” – dentro em poucos anos, na projeção do Banco Mundial em estudo publicado em 2018

Multiplicador de ameaças

A emergência climática é uma crise e no âmbito militar, por gerar cascatas de consequências, é chamada de multiplicador de ameaças. O extermínio da vida é uma probabilidade que deveria deixar inquietos, ansiosos e angustiados os humanos. Mas parecem anestesiados.

Como explicar que o incêndio que se propagou pelo Brasil nas últimas semanas, destruindo lavouras, matas nativas e ameaçando condomínios de luxo, não tenha gerado comoção? O que era mais urgente para o país? Participar com grandes comitivas de reuniões estéreis em Nova Iorque ou conclamar todos os brasileiros para um acerto de contas com a natureza espoliada?

Dentre as ameaças que podem ser vislumbradas no futuro próximo, estão a fome, a seca, a eliminação da biodiversidade. Tudo antecedido pela imensa e crescente migração dos refugiados do clima. Contam-se aos milhões. Calcula-se que, a partir de 2008, eles somem vinte e dois milhões.

As parcelas arruinadas e empobrecidas do mundo costumam infligir às sociedades relativamente mais estáveis e ricas esse flagelo. A elevação do nível do mar vai desalojar cerca de treze milhões de americanos, um percentual reduzido em relação à população total da hegemonia democrática do Ocidente. A belíssima Miami, destino de tantos brasileiros endinheirados, vai ser inundada. New Orleans vai perder meio milhão de habitantes.

Os Estados Unidos são ricos. Poderão suportar essas ameaças cada vez mais próximas. E o que dizer dos países menos desenvolvidos e mais empobrecidos do mundo? As nações menos resilientes são aquelas que foram as mais exploradas em seus recursos naturais pelos que obtiveram melhores condições materiais de existência.

A História da Humanidade é pródiga em nos ensinar que as engrenagens de uma sociedade são lubrificadas e movidas pela abundância. Quando surge a privação, elas emperram, claudicam e quebram. Os prognósticos são sombrios: quase duzentos milhões de pessoas em apenas três regiões do planeta se tornarão migrantes climáticos – prefiro “refugiados climáticos” – dentro em poucos anos, na projeção do Banco Mundial em estudo publicado em 2018. Quase noventa milhões na África subsaariana, quase cinquenta na Ásia Meridional e mais de vinte milhões na América Latina.

São números tão impressionantes, que os negacionistas não acreditam neles. Antes disso, haverá profusão de epidemias. Tanto a seca, assim, como excesso de chuva com suas inundações, vão devastar a economia das comunidades agrícolas. Não se avalia o que seja a intensificação das deficiências nutricionais. Isso já se registrou no Vietnã, em fetos e crianças. Os que sobreviveram à provação começaram a vida escolar muito mais tarde, seu desempenho era inferior e, uma vez adultos, não atingiram a altura prevista. É um padrão continuado do ciclo de pobreza.

A desnutrição crônica gera efeitos permanentes: capacidade cognitiva reduzida, salários achatados, morbidez aumentada. Efeitos perversos começam no útero e são universais. Seria de se esperar que a racionalidade humana encarasse tudo isso como desafio para mudança de atitudes. Infelizmente, não é o que ocorre. A mudança climática está a caminho de atrofiar todos os humanos remanescentes, por inúmeras formas, sem que grupo algum possa vir a ser poupado.

Há poucos anos, o “The Guardian” indagava aos seus leitores: “Quer combater a mudança climática?”. E respondia: “Tenha menos filhos”. O “The New York Times”, por sua vez, depois de várias publicações voltadas ao estilo de vida, que faz de cada criança americana um voraz consumidor, advertia: “Acrescente o seguinte à lista de decisões afetadas pela mudança climática: devo ter filhos?”.

É claro que já existe minoria que leva isso em consideração. Mas o crescimento da população continua em escala geométrica, enquanto os bens naturais desaparecem gradual, mas de maneira muito sensível em nossos dias.

Os únicos humanos que realmente sentem na carne a rapidez da degradação, vêm a ser os cientistas. O trauma climático os atinge de forma plena. A depressão do clima os deixa taciturnos, indignados e estupefatos. Como é que uma espécie que se autodenomina “racional”, não perceba estar à beira do precipício do qual não haverá qualquer mínima possibilidade de retorno?

E o Brasil do ufanismo, o gigante entorpecido que se vangloria de suas vantagens, deveria estar mais atento àquilo que já está acontecendo e que, é preciso acrescentar, vai piorar cada vez mais.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 02 10 2024



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