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O AQUECIMENTO MATA?
Acadêmico: José Renato Nalini
Seria muito bom dizer que as coisas vão melhorar. Mas vão piorar. A quantidade de dias mais quentes do que costumavam ser os dias mais quentes do ano podem aumentar cem vezes. Possivelmente, aumentarão duzentas e cinquenta vezes

O aquecimento mata?

O negacionismo afirma inexistir o aquecimento global. Tudo é catastrofismo dos fundamentalistas ecológicos. A natureza é sábia e se autocontrola em ciclos capazes de manter a higidez do planeta.

Não é verdade e a ciência já se cansou de evidenciar que a ignorância de muitos e a má-fé de alguns é suficiente para colocar a humanidade sob a mais grave ameaça a que já esteve submetida em sua longa história.

Observa David Wallace-Wells, no festejado livro “A terra inabitável”, que os “humanos, como todos os mamíferos, são máquinas térmicas; sobreviver significa ter de se resfriar continuamente, como fazem os cachorros ao ofegar. Para isso, a temperatura necessita ser baixa o bastante para que o ar atue como em um sistema de refrigeração, extraindo o calor da epiderme de modo que a máquina possa continuar bombeando”.

Nas previsões do futuro, se houvesse mais sete graus de aquecimento, sobreviver seria impossível em vastas porções da faixa equatorial do planeta, particularmente nos trópicos. O efeito seria muito rápido: em algumas horas, o corpo humano ficaria cozido, por dentro e por fora. À evidência, ninguém sobreviveria.

Na verdade, já superamos os índices aceitáveis para que a existência humana prossiga em condições de permanecer em seu habitat. Desde 1980, a Terra viu crescer mais de cinquenta vezes a quantidade de ondas de calor perigosas. E tudo continua a piorar. “Os cinco verões mais quentes da Europa desde 1500 ocorreram a partir de 2002 e, segundo adverte o IPCC, haverá um momento em que simplesmente trabalhar ao ar livre nessa época do ano será prejudicial à saúde em muitas partes do globo”.

Somos acostumados a varrer da memória notícias tristes. Mas basta fazer uma pesquisa no Google para verificar que em 2003, uma onda de calor letal na Europa fez mais de duas mil vítimas diárias. Morreram mais de trinta e cinco mil europeus, dentre os quais, catorze mil franceses. A ironia é que nos países ricos, os enfermos sobreviveram, assistidos em hospitais com ar condicionado. Os mortos eram, em sua maioria, idosos de certa forma saudáveis, mas que ficaram sozinhos quando as famílias saíram de férias para fugir do calor. Houve cadáveres que apodreceram por semanas, antes dos parentes voltarem.

Seria muito bom dizer que as coisas vão melhorar. Mas vão piorar. A quantidade de dias mais quentes do que costumavam ser os dias mais quentes do ano podem aumentar cem vezes. Possivelmente, aumentarão duzentas e cinquenta vezes. O prognóstico, baseado em estudos científicos e substanciosa pesquisa, é de Ethan Coffel, que se utilizou da métrica “pessoa-dia”. Uma unidade que combina o número de pessoas afetadas com o número de dias de calor. Todo ano, haverá entre cento e cinquenta milhões e setecentos e cinquenta milhões pessoa-dias em condições letais. O péssimo anúncio é de que os meses mais frescos nos trópicos - América do Sul, África e Pacífico - serão mais quentes do que os meses mais quentes do fim do século passado.

Países ricos já enfrentam o problema e o contornam. Na Arábia Saudita, onde as temperaturas de verão podem chegar a cinquenta graus, setecentos mil barris de petróleo são queimados, a cada dia, nessa época, para manter em funcionamento os aparelhos de ar condicionado. Só que o equipamento de ar condicionado já responde por dez por cento do consumo mundial de eletricidade. A demanda tende a se multiplicar. O mundo terá mais setecentos milhões de novos aparelhos de ar condicionado já em 2030. Dez anos depois, mais de nove bilhões de dispositivos de resfriamento de vários tipos serão utilizados.

Muito envolvidos em nossos micro-mundos, não prestamos atenção ao fato de que, em nosso país, em nosso Estado e em nossa cidade, muitas pessoas estão morrendo em virtude do calor. O calor é letal. Mata mais do que o frio. E sem devolver à natureza os bilhões de árvores dela subtraídas, não haverá água bastante para amenizar as temperaturas. Como firmou Antônio Guterrez, somos uma nau de insensatos em direção ao inferno.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 01 10 2024



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