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Acadêmico: José Renato Nalini O aplauso o deixara cego. Ainda sonhava com o arrependimento de sua cidade, que viria a coroá-lo com os louros cabíveis a seu principal poeta. Só que, em 1302, quiseram queimá-lo vivo. Agora, oferecem não a epifania, mas o cadafalso. Na versão de Giovanni Papini, “entre Florença e Dante não pode haver acordo: tanto a cidade como o cidadão são igualmente obstinados. O poeta pede-lhe uma apoteose; a cidade exige-lhe ou a humilhação, ou a vida”
Não se iludam, pretensiosos! A glória terrena é passageira. Infeliz de quem se ilude com ela. Não se deve esquecer que a mesma turba que saudava o Cristo com ramos de oliveira, gritava “crucifica-o” poucos dias depois. Nem olvidar que “a mão que afaga é a mesma que apedreja”. O mais comum é que a fama sirva para atrair interesseiros. Quem é que não gosta de ser amigo de celebridade? Nesta era de selfies, todos os que gozam seus cinco minutos de glória são alvo de infinita legião de admiradores, legião que pretende deles se mostrar próxima ou íntima. Só que tudo passa. E os que se auto enganam colherão o fel do esquecimento. Ou, pior ainda, os vitupérios dos invejosos. Quantos aplaudidos por sua erudição, mal saem de cena são criticados por seu exibicionismo? Ridicularizados por pretensos fãs, por hipócritas que ainda havia pouco os elogiavam “de corpo presente”. A História é pródiga ao evidenciar que o caráter humano é bastante frágil em termos éticos. O incomparável Dante Alighieri é um de seus mais eloquentes exemplos. Já estava fora de sua Firenze, que o banira. Alimentara a esperança de que o Imperador Henrique fizesse ressurgir o Sacro Império. Mas este morreu em 24 de agosto de 1313, dia da morte do sonho do fiorentino. Em 1315, sua pátria o condena novamente à morte. Não aceitara as humilhantes condições da anistia proposta aos foragidos e não se apresentou, no prazo fixado, perante o Vigário do Rei Roberto. Viu-se condenado à decapitação. O aplauso o deixara cego. Ainda sonhava com o arrependimento de sua cidade, que viria a coroá-lo com os louros cabíveis a seu principal poeta. Só que, em 1302, quiseram queimá-lo vivo. Agora, oferecem não a epifania, mas o cadafalso. Florença resolveu se livrar do filho indesejável. Na versão de Giovanni Papini, “entre Florença e Dante não pode haver acordo: tanto a cidade como o cidadão são igualmente obstinados. O poeta pede-lhe uma apoteose; a cidade exige-lhe ou a humilhação, ou a vida”. A proposta era inegociável. Estava em Verona e cuidou de buscar outro abrigo. Escolheu Ravena. Não há certeza de quanto tempo ali viveu. Nem se ali lecionou ou se teve discípulos particulares ou moços que depois vieram a se gabar de terem sido seus discípulos. É provável que em Ravena escreveu os últimos cantos do “Paraíso”, a mesma cidade em que teve início a última etapa do Império de Roma. Foi de Ravena que partiu Cesar para transpor o Rubicão. E também foi em Ravena que foi encarcerado o último imperador do Ocidente, Rômulo Augustulo. Igualmente em Ravena foi derrotado e morto o primeiro bárbaro que ousou substituir os sucessores de César: Odoacro. Eram recordações cristãs, contudo, que provavelmente comoveram Dante em Ravena: as histórias dos santos Romualdo e Pedro Damiani, que mereceram menção em sua Divina Comédia. O último era o que mais sensibilizava o poeta, pois fora quem estigmatizara, com dantesca crueza, os vícios imundos de muitos prelados. Embora acolhido em Ravena, é de se observar que Dante não tornava felizes as pessoas as quais amou, nem às que o amaram. A mãe morreu-lhe poucos anos depois de o dar à luz. O pai, perdeu-o ainda menino. Guido Cavalcanti, o primeiro amigo, morreu moço. Beatriz, a amada que eternizou em sua obra, faleceu aos vinte e seis anos. O alcaide de Ravena, Guido Novello, neto de Francisca de Rimini, não sobreviveu um ano após à morte de Dante. Em Ravena, Dante conviveu com notários e poetas menores, pessoas medíocres e que não podiam compreender o estado de sua alma ferida e a estatura de sua poesia. Papini chega a ser cáustico: “Está escrevendo os cantos do Paraíso, os cantos mais perfeitos e celestiais de seu poema, e vê-se cercado de tabeliães e poetastros de quarta ordem. Até os filhos eram, como se pode ver do que eles deixaram, inteligências mesquinhas, muito pouco elevadas... Em suma, Dante é uma águia que tem que se contentar com a companhia de pássaros e urubus”. À falta de vivos, Dante se distrai com os mortos. Pressentia que o fim da “Comédia” precederia muito pouco o fim de sua existência. Solitário entre os homens, como – aliás, - sempre o fora, repelido e proscrito pela pátria, sorveu o cálice do olvido. Morreu aos 14 ou 15 de setembro de 1321, talvez identificando em sua jornada uma dura sequência de desgraça e desenganos. Só depois de morto é que seu berço natal disputou seus despojos. Em sua defesa e glória falaria, pelos séculos que viriam, a imorredoura obra da “Divina Comédia”. Mas as glórias tardias, sempre frias, realmente compensam os sofrimentos tangíveis de sua existência? Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Blog do Fausto Macedo, em 06 08 2024 voltar |
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