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Acadêmico: José Renato Nalini O Papa e o Poeta estão face a face, adversários. Em posição antagônica, duas das maiores almas daquele momento histórico. Semelhantes em sua orgulhosa altivez. Diferentes em todas as demais qualidades
Não hostilize os poetas A Florença dos anos 1295 a 1300 contou com a participação de Dante Alighieri na gestão dos negócios locais. Modesta, é certo, porque a democracia daquela comuna, desconfiada e facciosa, não permitia a um só homem tivesse um poder hegemônico. Havia seis ou sete conselhos que se fiscalizavam e se atrapalhavam mutuamente e um Parlamento que os convocava a todos, de dois em dois meses. Entre magistrados e conselheiros, havia centenas de regedores. A magistratura mais importante era a dos Priores, mas governavam apenas por dois meses. Dois pareceres foram da lavra de Dante: em 15.3.1301, foi contrário à proposta de concessão de socorro a Carlos de Anjou e em 19.6.1301, opôs-se à prorrogação do serviço militar de cem soldados fiorentinos mantidos nos confins da Toscana, por ordem do Papa Bonifácio VIII. Antes disso, exerceu dois cargos em 1300. Em abril, para fiscalizar o alargamento da rua de São Próculo e em maio, para ir a San Gemignano como embaixador. O alargamento da rua lhe interessava, pois possuía ali dois lotes de terreno e um casebre. A embaixada a San Gemignano, a cidade das torres, era para convidá-la a se fazer representar nas eleições do Capitão da Liga Guelfa em Toscana. O único episódio notável de Dante como político foi a embaixada junto ao Papa Bonifácio VIII. Carlos de Valois foi nomeado pelo Papa medianeiro de paz na Toscana. Florença não aceitou e enviou três embaixadores junto à Santa Sé para protestarem: Maso Minerbetti, Corazza de Signa e Dante Alighieri. Em Roma, Bonifácio VIII recebeu os três reservadamente. Foi direto e objetivo: “Por que sois vós tão teimosos? Humilhai-vos a mim; e eu vos digo francamente que não desejo outra coisa senão a vossa paz. Dois de vós regressem; e recebam a minha bênção, se estão dispostos a fazer com que seja obedecida a minha vontade”. O Papa não os tratou como embaixadores de uma cidade livre. Mas como servos rebeldes, vassalos insubmissos. Mandou de volta os mais fracos e deteve o terceiro, Dante. Era o mais temível, por sua eloquência e erudição. Ficou ali como penhor e refém. Não se sabe o que Dante respondeu ao Pontífice. Mas, sobre este, já firmara a sua convicção. Sonhava com a vinda de um Imperador que havia de castigar a Igreja infiel e simoníaca. Deve ter sido nessa oportunidade que nasceu em sua alma aquele ressentimento contra o Papa, a quem veio chamar, na “Divina Comédia”, “príncipe dos novos fariseus”. Incluiu-o no fogo eterno do inferno, entre os demais simoníacos, por ter usurpado a Cadeira de Pedro e profanado o sepulcro do Príncipe dos Apóstolos. O Papa e o Poeta estão face a face, adversários. Em posição antagônica, duas das maiores almas daquele momento histórico. Semelhantes em sua orgulhosa altivez. Diferentes em todas as demais qualidades. Ambos eram fortes, destemidos, grandes. Bonifácio, por sua altíssima dignidade, pela abundância de ouro, pelo poder temporal, apoiado pelos príncipes. Seu elevado prestígio é brevíssimo. Menos de dois anos e será preso e desfeiteado como um reles malfeitor. Seu palácio saqueado, sua pessoa agredida e humilhada. Morrerá, depois de um mês, consumido pelos dissabores. Dante, aparentemente, não dispõe de qualquer força material. Apenas representa um partido às vésperas de ser derrotado. Acha-se inteiramente nas mãos e submisso à vontade pontifícia. Mas sua potência, ainda oculta, está no seu coração e na sua inteligência. Na força do talento, da arte e da palavra. Muito mais do que a Bonifácio, é a ele que pertence o futuro. Só no orgulho eram gêmeos. No mais, completamente distintos. Mas situavam-se no mesmo patamar. Dois colossos: o sucessor de Pedro e o herdeiro de Virgílio. O autor da bula “Unam Sanctam” e futuro autor da “Monarchia”, que faria príncipes e reis observarem. Do outro lado, aquele que julgará severamente não somente Imperadores e Reis, mas também os Papas. Ambos utopistas, mas possuídos de utopias opostas. Igualmente convictos de terem sido investidos e inspirados por Deus. Nem sequer no semblante se assemelhavam. Bonifácio tinha 66 anos, compleição robusta e de alta estatura. Dante, trinta e poucos, estatura medíocre, encurvado e macerado de tanto estudar. Igual destino os aguardava. Em 1302, Dante será acusado de peculato e rebeldia e condenado a ser queimado vivo. Em 1303, a assembleia de Paris, convocada por Felipe, o Belo, acusará Bonifácio de heresia, simonia, magia, roubo, incesto e sodomia. Dante é expulso de sua pátria. Bonifácio perde poder e vida. Bonifácio foi o Papa mais odiado da história. Nenhum ódio, entretanto, mais fatal do que o dos poetas. Jacopone de Todi e Dante se vingaram. Aos versos terríveis deles é que Bonifácio deve sua infâmia. Tinha razão Ariosto, quando aconselhava aos grandes da terra não incomodarem os poetas. Se Bonifácio soubesse disso, não teria deixado Dante sair vivo de Roma. Já mandara executar inúmeros inimigos. Não teria hesitado em eliminar mais um. Só que o mundo não conheceria a Divina Comédia. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Blog do Fausto Macedo, em 18 07 2024 voltar |
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