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Acadêmico: José Renato Nalini Dois anos depois, ainda repercutia no Senado a falsa insinuação de que Glicério patrocinara a tentativa de assassinato de Prudente. É o lado miserável da política, a enlamear sem provas e a julgar sem compaixão
Fake news no nascedouro da República O golpe de 15 de novembro de 1889 foi uma surpresa para a Nação, então ainda mais iletrada do que hoje. As “elites” sempre estiveram mais preocupadas com a salvação de seus interesses do que em real participação na gestão da coisa pública. Procurar o “bem de todos” nem sempre se compatibiliza com o lema “o meu primeiro”. Por isso, alguma perturbação subsequente à proclamação ficou no terreno das conjecturas e da lenda. Inclusive aquela propalada em todo o Brasil, de que Francisco Glicério tramara o atentado contra a vida de Prudente de Morais. Os comentários feitos em rodas particulares chegaram ao Senado, onde Glicério era Senador. Na sessão de 9 de novembro de 1904, ele teve de responder a uma insinuação de seu colega Lauro Sodré, a respeito desse acontecimento. Pediu licença para uma explicação pessoal, por se tratar de assunto também pessoal. Lembrou que a tentativa de matar o primeiro Presidente civil da República enlutara a nação, pois “um ato de evidente loucura”. E continuou: “desse fato trágico em diante, a política brasileira está informada das injustiças que envolveram o meu nome. E, arrastado aos tribunais, como cúmplice desse atentado, tive a desventura de assistir quase que pessoalmente aos votos dados pelos meus mais diletos amigos de lutas políticas, no sentido de me entregar ao julgamento dos tribunais”. Compreendia, no entanto, a motivação que os levara a conceder a licença para que o Judiciário viesse a julgar integrante de outro poder, o Parlamento: “Jamais pus em dúvida sequer a boa-fé dos políticos que assim procediam, como jamais desesperei da sorte da República e jamais, por profundas que fossem as nossas mágoas de então, aconselhei outro caminho que não fosse o caminho constitucional”. Ratificou suas inúmeras declarações de que jamais, depois da República, havia tomado parte em revolução alguma. “É a mais pura verdade. Mesmo após o golpe de Estado que dissolvera o Congresso Nacional, mesmo para reagir contra esse ato funesto à Constituição da República, eu aconselhei somente meios pacíficos, meios legais. É público e notório que dissenti dos meus amigos”. Nesse momento de sua fala, Glicério foi ovacionado por seus colegas de Senado. Prosseguiu a explicar sua orientação de “formar ao lado do governo de então, um partido que tivesse por bandeira a Constituição de 24 de fevereiro, ponderando aos amigos de então os perigos de tomarmos a responsabilidade direta ou indireta de uma segunda revolução; parecendo-me que a revolução, apesar do grande golpe desferido conta a Constituição, não se legalizava completamente”. Submeteu-se, contudo, à deliberação de seus amigos. Embora a revolução fosse apelidada de “reivindicação liberal”, notório que muitos atos ilegais foram praticados contra a vida e contra a propriedade dos cidadãos”. Fiel ao seu partido e ao seu governo, Glicério ainda tentara salvar os abusos presidenciais. Recordou que, ao pedir ao Senado a aprovação dos atos do governo, dizia: “quisera que nenhum ato ilegal se houvesse praticado, mas os governos não podem, em certas situações, evitar que tais erros sejam cometidos; e então não é prudente separar o principal pelos incidentes”. E concluía por pedir ao Legislativo coonestasse os atos do governo à época. Francisco Glicério sofreu a injustiça de uma acusação baseada em boatos. Era amigo íntimo de Prudente de Morais. Tanto que, na sessão de 3 de dezembro de 1902, proferiu o elogio fúnebre ao ex-Presidente que falecera. “Cabe-me o dever penoso de vir comunicar oficialmente ao Senado a triste nova do falecimento do meu ilustre patrício, do notável brasileiro, do íntegro republicano a quem o novo regime deveu em larga parte o seu advento: o Dr. Prudente de Morais”. Referiu a autoridade moral de Prudente, a cujo elevado prestígio “se deveu o extraordinário sucesso da Constituinte de 1891. Prudente de Morais foi em 1894 aclamado pela opinião nacional, tão certo é que a sua eleição correspondeu, naquele momento da história constitucional da República, a uma evidente exigência do sentimento público, como raramente pode esse fato ser devidamente observado na vida política dos povos”. Enalteceu o amor do falecido pelas “instituições que tanto ajudara a fundar, com exagerado ciúme, talvez, mas indubitavelmente com o desígnio ininterrupto de as perpetuar e engrandecer”. Só que, dois anos depois, ainda repercutia no Senado a falsa insinuação de que Glicério patrocinara a tentativa de assassinato de Prudente. É o lado miserável da política, a enlamear sem provas e a julgar sem compaixão. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Blog do Fausto Macedo, em 01 07 2024 voltar |
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