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Acadêmico: José Renato Nalini Procuro nutrir-me da certeza de que não dei causa a tal situação. O mundo se perverteu. O convívio apodreceu. Aninho-me, ensimesmado, em minha ilusão e me consolo dizendo para mim mesmo: lá fora é perigoso
Tiveste juventude? Em “O trágico cotidiano”, Giovanni Papini exerceu um de seus talentos: a literatura divagante e vaga, narrativas extravagantes, paradoxais, absurdas, quase delirantes. Foi uma revolução no campo da literatura italiana. Seu intento era transferir o drama das aventuras exteriores às aventuras interiores, puramente espirituais ou intelectuais. Na verdade, a maioria dos textos não é mais do que uma angustiada exploração da própria alma do autor, às voltas com as reflexões quase sempre negligenciadas: você é finito, você é destinado a morrer. A acabar. Hoje, a longevidade está na moda. São inúmeros os artigos a contemplarem as conquistas da ciência e da medicina, a procura de pessoas que alcançaram viver por mais de um século. Ao lado disso, - o que deve ser comemorado, é certo – existe a pergunta que Papini já fazia na primeira metade do século XX: “Você crê viver, viver de verdade, profundamente, inteiramente? Parece que sua vida é tão bela e grande como acaso a sonhara nos dias ardentes da juventude?”. A indagação que pode anteceder as anteriores, é também múltipla: “Tiveste uma juventude? Sentiste em ti, dentro de tuas entranhas, dentro de teu sangue, algo que fermentava, que fervia, que se agitava, que queria sair, derramar-se, inundar o mundo como um lago de chamas? Sentiste nunca, depois de alguma hora de agitação, depois de um grande crepúsculo, depois dos versos de um poeta, sentiste que eras tu, tu em pessoa, o primeiro homem, o descobridor da vida, o descobridor do mundo? E não te pareceu mísera esta vida, e não te pareceu pequeno este mundo? Não desejaste a morte por amor à vida?”. Tais questões parecem ainda mais graves quando se utiliza a segunda pessoa do singular, o quase agressivo “tu”. Giovanni Papini é um provocador. Ele se dirige a um fictício leitor enfraquecido, atento ao que ocorre com a vida alheia, porque não sabe praticar os atos que validariam a sua própria existência. E isto vale para os nossos tempos. Aficionados às redes sociais, acompanhando o que acontece com os outros, principalmente com aqueles que não conhecemos e que nunca iremos conhecer, deixamos de confeccionar a trama de nossa única e insubstituível vida. Daí o quase insulto papiniano: “Não te parece vil, covarde, covardíssima, a ação que estás realizando?”. Isso vale para uma profunda reflexão. Criticamos o Estado, mas o que fazemos para modifica-lo. Podemos até ser “simpáticos” à causa do aquecimento global, gerador das mudanças climáticas que tendem a eliminar qualquer espécie de vida da face da Terra. Mas o que fazemos, individualmente, para impedir essa catástrofe? Economizamos água e energia? Andamos mais a pé? Servimo-nos do transporte coletivo? Reciclamos nossa excessiva produção de lixo? Plantamos árvores? Defendemos as árvores que continuam a ser exterminadas no âmbito macro – em todos os biomas – e no âmbito micro, em nossa própria rua, bairro, cidade? Ainda assim, quantos de nós nos consideramos intelectuais, refinados, pensadores, aristocratas, criaturas superiores às demais – convivemos, no mesmo espaço físico e esbarramos continuamente – com os excluídos, os miseráveis, os despossuídos – mas não somos como eles. Ao contrário: o mundo gira ao meu redor. O mundo foi feito para mim. Daí o questionamento de Papini. Quem vive assim, alienado, na verdade não vive com aquela grandeza com que concebe sua peregrinação por este planeta. Não vive grandemente, profundamente, inteiramente. Escondo-me na segurança de minha casa, cada vez mais cercada de equipamentos que me garantem que dela não vou ser expulso. Ergo muralhas na residência que foi construída num bairro planejado, chamado paradoxalmente de “Jardins”, porque ali se edificaria uma sociedade verde e florida, sem cercas, mas com amplas frentes cobertas de vegetação. Não satisfeito com erigir uma fortaleza cinza ou negra, ainda coloco offendicula para obviar pretenso acesso dos invisíveis. Procuro nutrir-me da certeza de que não dei causa a tal situação. O mundo se perverteu. O convívio apodreceu. Aninho-me, ensimesmado, em minha ilusão e me consolo dizendo para mim mesmo: lá fora é perigoso. Os caminhos estão repletos de lobos famintos. Faço o que posso para defender minha família. Será que foi isso o que sonhei quando jovem? Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Blog do Fausto Macedo, em 20 06 2024 voltar |
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