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SOBRE A DIPLOMACIA DO GOVERNO LULA
Acadêmico: Celso Lafer
A condução da política externa requer um esforço de sintonia com a sociedade para amainar riscos de polarização interna

Sobre a diplomacia do governo Lula

Lula da Silva assumiu o seu terceiro mandato com o objetivo de se contrapor ao que foi o peso de passivos diplomáticos oriundos do “negacionismo” circunscrito da visão de mundo do presidente Jair Bolsonaro.

A repercussão internacional da eleição de Lula foi altamente positiva. Foi substanciada pelas suas prévias realizações diplomáticas, a vis atractiva de sua personalidade, seu conhecido interesse pelas relações internacionais, e pela sinalização, inovadora em relação ao Lula I e II, da ênfase que pretende dar ao meio ambiente.

É indiscutível que do ponto de vista quantitativo o Brasil de Lula está de volta ao mundo. É o que atestam suas muitas viagens internacionais, importante presença em reuniões em instâncias multilaterais, plurilaterais e regionais e as não menos numerosas visitas de altas personalidades estrangeiras.

Se o Brasil com Lula está, em termos quantitativos, de volta ao mundo, qual é a dimensão qualitativa desta reinserção? Lula III se confronta com um mundo, uma região e um país distintos dos de suas anteriores Presidências.

O Brasil de hoje é muito mais polarizado do que o de Lula I e II. É muito menos organizado do que aquele que recebeu da qualificada Presidência de Fernando Henrique Cardoso. Carrega o peso do negativismo da Presidência de Bolsonaro e seus desdobramentos para a vida democrática. Por isso, a condução da política externa requer um esforço de sintonia com a sociedade para amainar riscos de polarização interna.

A latitude da política interna de Lula III para a sua ação diplomática é menor do que a de Lula I e II, nos quais pôde contar com o respaldo de sua popularidade e a preponderância política do PT. Não é o caso agora. Lula III foi eleito com uma margem apertada, e o seu sucesso foi e vai além do PT. A compreensão desta nova realidade não é forte na percepção e na conduta do presidente, que é mais autocentrado na sua experiência anterior. Também não é forte no PT, que tem o ouvido do presidente na articulação diplomática de sua visão do mundo, que não é compartilhada por um espectro grande dos atores políticos brasileiros. A consequência disso tudo é a internalização conflitiva da atual política externa que se soma com outros temas e problemas da pauta de governança de Lula III.

A América do Sul é hoje muito mais heterogênea e fragmentada do que era em Lula I e II. Daí a diminuição das oportunidades de esforços comuns de cooperação na região e o seu potencial de impacto no plano mundial.

Menor latitude interna e menos espaço para ambiciosas ações regionais se conjugam com menos espaço para a atuação do “soft power” brasileiro no plano mundial. O mundo de hoje é mais hobbesiano. É mais propenso ao conflito e menos a consensos internacionais sobre temas globais que sempre foram parte das ambições diplomáticas de Lula.

Estamos inseridos num mundo permeado por tensões regionais e internacionais de poder, que vem propiciando o retorno da geopolítica e da geografia das paixões. A mais relevante é a tensão de hegemonia China e EUA, que não existia em Lula I e II, quando a China não estava disputando primazia hegemônica com os EUA. É o que dificulta a calibração do Brasil na vida internacional.

A diplomacia de Lula III se confronta com dois conflitos de magnitude: em Gaza e na Ucrânia. O de Gaza vai além da terrível situação humanitária. Está relacionada ao equilíbrio das forças no contexto regional e ao espaço e papel de potências externas na dinâmica do Oriente Médio. Identifico na posição brasileira, em especial nas improvisadas e não medidas manifestações do presidente, uma emotiva exortação em prol da paz. Carrega a simpatia pela causa palestina presente no PT. Possui uma opacidade em relação ao desafio existencial de Israel. Lula III vem se associando ao coro da geografia das paixões que o conflito suscita. É um tema que se internalizou.

O conflito na Ucrânia está vinculado às tensões de hegemonia. Conduzida pela Rússia de Vladimir Putin, é uma guerra de agressão. É uma inequívoca expressão do uso da força contra a independência e a integridade territorial da Ucrânia, o que se contrapõe à Carta das Nações Unidas.

A continuidade da guerra e a sua violência alteram o prévio horizonte da segurança europeia. Colocam na pauta o uso das armas nucleares. São uma ameaça existencial aos vizinhos da Rússia. Neste contexto, não cabe benevolência em relação à Rússia de Putin, que se contrapõe à política jurídica externa do País, positivada na Constituição de 1988.

O recente endosso de Celso Amorim à proposta de uma conferência de paz articulada pela China, aliada da Rússia, para constituir um eixo de paz (a palavra eixo não traz boas lembranças para os estudiosos da paz) atrela o Brasil à China e aos seus interesses hegemônicos. Não contribui para a credibilidade da equidistância do “soft power” do nosso país e as ambições de Lula III de assegurar um apropriado lugar no mundo. Não fará do Brasil um terceiro em favor da paz, mas sim um terceiro aparente, aliado a uma visão compreensiva da Rússia, que se dissolve na dinâmica das polarizações.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 16 06 2024





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