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Acadêmico: José Renato Nalini O inquieto e provocador escritor italiano Giovanni Papini escreveu suas memórias e seu texto é instigante.
O inominável me disse O inquieto e provocador escritor italiano Giovanni Papini escreveu suas memórias e seu texto é instigante. No capítulo “narrativas”, imerge no cotidiano trágico e tem um texto chamado “O demônio me disse”. Começa por dizer que em toda a sua vida falou com o demônio somente cinco vezes. Mas se considera o humano que com o cão tem maior familiaridade e é quem o conhece mais intimamente. O diabo sempre o tratou “com uma benigna condescendência”, que chegou a emocionar Papini. “Quando estou com ele, não faço senão escutá-lo. Quer dizer: equivoco-me: eu o escuto e o olho”. Satã é uma pessoa que foge do comum. Alto e muito pálido, bastante jovem, mas “daquela juventude que viveu demasiadamente e que é mais triste do que a velhice”. Contou-lhe ser difícil que, nestes tempos, se decida a voltar à Terra. “Um dia me confessava com ar de tristeza: - “Agora já os homens não me interessam. São comprados por pouco e valem cada vez menos. Não têm mais juízo, nem alma, nem alento: talvez sequer tenham sangue bastante para escrever o contrato de compra”. Apesar disso, às vezes o demônio se aborrece de seu espaço atulhado de gente que foi para lá. Ninguém o reconhece quando entre nós, porque os homens se confundem: ele se parece cada vez mais com os humanos. Papini nunca encontrou um ser mais indulgente que o diabo. Conhece tão perfeitamente as perversidades, as velhacarias, as porcarias e bestialidades humanas, que nada mais o surpreende ou causa indignação. É pacífico e sorridente como um sábio antigo e às vezes chega a parecer mais cristão do que a maioria dos que se dizem cristãos e que estão neste mundo. Perdoa e compreende até Aquele que o condenou e expulsou de seu lado. Quando fala Dele, reconhece que o Onipotente agiu com justiça desalojando-o do céu, já que um rei não pode permitir que haja ao seu lado seres demasiadamente soberbos e indisciplinados. Ainda acrescenta: - “Se eu estivesse em Seu lugar, teria condenado o rebelde a uma pena mais terrível. Eu o obrigaria à inação, à inamobilidade. Ao contrário, Deus foi generosamente clemente para comigo e me proporcionou o modo de seguir a carreira para a qual eu era mais adequado”. Seu ofício é o de atormentador dos homens. Só que a convivência com os “seres racionais” o amansou. Já não é tão feroz e terrível. Não é o monstruoso demônio do medievo, com rabo e chifres. Deu-se conta de que a tentação é perfeitamente inútil. Os homens pecam por si mesmos, natural e espontaneamente, sem necessidade de excitações e de incentivos. Já os não considera inimigos, adversários que tem de conquistar em severa peleja. São bons e fieis súditos, dispostos a pagar seu tributo sem reclamar. O último encontro de Giovanni Papini com o demo foi numa rua de Firenze, pela qual o cão caminhava lendo um livro e rindo. Iniciou a conversação dizendo: - “Conheço há séculos este livro: é a Bíblia. Eu a releio de vez em quando, quando tenho necessidade de readquirir o bom humo. Estava relendo agora, pela milésima vez, os primeiros capítulos do Gênesis. Neles, interpreto um papel importante e, algumas vezes, sou por demais soberbo e um pouco vaidoso. Gosto, digo a verdade, voltar a ver-me sob os belos despojos da serpente, enroscado na arvore e a dialogar com a agradável Eva. Mas é uma lástima que a história da tentação tenha sido tão adulterada pelos historiadores servos de Deus. Qualquer dia, se tiver tempo, farei uma edição corrigida da Bíblia, não só corrigida, mas aumentada, porque os santos e piedosos escritores sentiram repugnância de escrever com demasiada frequência meu nome e deixaram na obscuridade algumas de minhas melhores façanhas. Na verdade, ao tentar Eva, não disse que a árvore era aquela que apenas permitiria distinguir o bem e o mal. A árvore era a da sabedoria, da ciência, do visível e do invisível. Os dois primeiros humanos só comeram um dos frutos. Por isso conservaram-se ignorantes. Isso é o que viabiliza a facilidade com que atendem à vontade do demoníaco, facilitando o seu trabalho de conquistar a humanidade. Tarefa da qual parece que o senhor dos infernos dá conta com inegável sucesso. Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 01 06 2024 voltar |
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