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Acadêmico: José Renato Nalini A ocupação clandestina já chegou às margens das represas. São construções que aceleram o processo de deterioração de um espaço que deveria ser considerado um santuário
Todos seremos vítimas A capital paulista não nasceu por acaso. Os jesuítas que ultrapassaram a muralha verde da Serra do Mar e vieram criar nova civilização no planalto foram persuadidos ante a existência de grandes rios e inúmeros córregos. A água já era considerada uma bênção. Sem água não se vive. Mas a irracionalidade, abraçada com a ignorância, resolveu retificar os rios. Nem se pode chamar o Tietê de rio: ele é um canal, obrigado a correr em linha reta, quando antigamente serpenteava pelas várzeas. Riachos e outros cursos d’água foram canalizados ou simplesmente sepultados sob a camada asfáltica a servir ao transporte. A conurbação atende mais ao trânsito e a seu personagem poluidor, o petróleo, do que aos humanos. Várias crises têm sido enfrentadas pela população paulistana e da macrorregião contígua. Há dez anos, a situação parecia colapsar. Haja investimento e recurso, além de inventividade na engenharia, para permitir que a vida continue a existir neste solo. Mas a situação não é tranquila. Remanescentes da Mata Atlântica situados no extremo sul da pauliceia contêm os derradeiros mananciais. São as águas que abastecem Guarapiranga e Billings, os dois reservatórios mais importantes para a Grande São Paulo. Trinta por cento da população desta área dependem dessas nascentes. E elas estão desaparecendo, mercê de uma ocupação indiscriminada, irregular e, portanto, ilícita. A luta desenvolvida pelos heroicos integrantes da chamada Oida – Operação Integrada de Defesa das Águas, resultante de um convênio entre Estado e município – é desproporcional e cruel. A ilicitude não tem os freios inibitórios da normatividade, dos controles e da fiscalização a que se submetem os agentes da autoridade. Por isso a desenvoltura com que desmatam, invadem, erguem barracos e conseguem criar situações de pseudoconsumação, para evitar a reintegração da área sob argumento de ofensa ao direito à moradia. Não é fato isolado. São centenas de ocupações irregulares, algumas chamadas de forma inadequada de “loteamentos”, que procuram evitar a ação saneadora do poder público, mas estão cavando um cenário tétrico de perda definitiva de condições de acolher moradores. Parece que a sociedade não acordou para a gravidade do problema. É seríssimo e de consequências verdadeiramente trágicas. Uma luta desigual, entre um Davi representado por poucos fiscais, alguns integrantes da Guarda Municipal e da combativa Polícia Ambiental e, de outro lado, possantes estruturas desvinculadas de qualquer controle, a atuar subrrepticiamente, mas com tenacidade e vigor, de forma incessante. A ocupação clandestina já chegou às margens das represas. Não são apenas construções toscas. Há casas que aspiram à condição de espaços de recreio. Mas que conspurcam as águas, matam os últimos cursos d’água, aceleram o processo de deterioração de um espaço que deveria ser considerado um santuário. Pois dele depende a sobrevivência de milhões de seres humanos. Uma atuação de forma isolada e sem a imprescindível parceria do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Judiciário – que tem de atuar sob a égide do consequencialismo – é destinada ao fracasso. É urgente que a academia, o empresariado, o terceiro setor e a chamada sociedade civil se articulem. Tomem conhecimento da tragédia. Coloquem suas potencialidades para servir a uma causa que não tem donos, mas capaz de produzir uma infinidade de vítimas. A municipalidade tem feito sua parte. Em fevereiro, o prefeito Ricardo Nunes assinou decretos de utilidade pública de 157 quilômetros quadrados de áreas verdes, o que fará com que São Paulo passe a possuir uma vegetação pública permanente muito superior à média das cidades de porte análogo. A responsabilidade pela preservação dos resíduos de Mata Atlântica, bioma destinatário de especial proteção de parte do Estado, pois previsto na Constituição ecológica, não é apenas do prefeito. É de todos os cidadãos conscientes de que as mudanças climáticas vieram para ficar e se tornarão a cada dia mais inclementes. Fenômenos extremos, imprevisibilidade das condições atmosféricas, transtornos de toda espécie converterão esta terra que habitamos em um lugar inóspito, hostil e potencialmente letal. Será que a inteligência florescente nas nossas universidades, o cérebro que tornou São Paulo uma referência mundial em avanços, em verdadeiros prodígios em inovações, em empreendedorismo e em cultura e arte não pode se consagrar agora a essa causa salvífica? É a esperança que as gerações do amanhã conseguem nutrir, antes que o caos inviabilize qualquer resposta de parte da razão humana. O desastre não é seletivo. As vítimas seremos todos nós. Não nos resta muito tempo. A urgência é para ontem. Há muitas pessoas aflitas, realizando o que é possível numa escala micro. Convertê-la em ação macro é o desafio que ora se apresenta e que conclama todos os humanos providos de consciência e de boa vontade. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Espaço Aberto, em 01 05 2024 voltar |
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