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PAI, ENSINA-ME A ESCREVER
Acadêmico: Gabriel Chalita
Meu bom José, meu pai, ensinou a mim o texto e o contexto.

Pai, ensina-me a escrever

"Pai, ensina-me a escrever”, foi o que eu disse quando tinha idade quase nenhuma.

"Você já sabe escrever, filho", foi o que ele respondeu.

"Queria escrever como o senhor escreve, com os sentimentos.”
 
E foi assim que ele deu um abraço que nunca mais desabraçou de mim.

Meu pai não era propriamente um escritor, não escrevia como oficineiro de um ofício nobre de eternizar os encontros das palavras para fazer livros. Escrevia em folhas de cadernos para meditar a vida. Escrevia poemas que sua alma lia. Poemas que, ao serem lidos pela sua alma, faziam dela ainda mais bela, tão bela que a vida fora se perfumava.

Guardo algumas dessas páginas envelhecidas pelo tempo. Havia muitos poemas para minha mãe. Poemas que nem sempre eram entregues. Era sobre ela, era sobre eles. Poemas de gratidão pelo amor que ele sentia. Poemas sobre o riso de minha mãe, sobre os seus olhos nos olhos dele. Poemas simples. Poemas lindos.
 
Um dia, chorei abraçado a uma almofada que descansava na sala de casa. Eu estava sozinho, quando ele chegou. Ofereceu colo. Pediu explicação. Eu disse da dor. Eu disse do amor não retribuído. Ele disse: "Escreva, filho, aproveite esse sentimento e escreva para você não desperdiçar essa dor".

Outra vez, foi em uma alegria, um presente de uma tia que eu amava muito. "Escreva, filho meu, escreva para não se esquecer da bondade.”

Senti medo, mais de uma vez, e ele me disse: "Escreva, filho, dê nome ao seu medo, converse com ele, quem sabe vocês possam se entender".

Faz tanto tempo dessas letras nascidas nas tintas do coração. Estudei estudos mais profundos da tessitura das prosas e dos poemas. Mergulhei a fundo na aprendizagem da semântica e da sintática. Fui estudar semiótica. Sempre no percurso de fidelidade à escrita, à literatura. E, modestamente, aprendi. E, humildemente, jamais desaprendi as lições de meu pai e de seus cadernos de textos sobre os seus cotidianos.

Ele trabalhou desde cedo, foi pouco à escola. O meu avô, pai de minha mãe, também não pôde estudar. Aprendeu as letras copiando as letras. A quem podia, pedia ajuda para escrever melhor. Os dois tinham letras tão bonitas e conversavam tão bonito sobre as vidas duras que viveram. E sorriam, inclusive, das durezas. Eram fortes nos prosseguimentos.

Meu pai, o escritor dos escritos do coração, foi à noite de autógrafos do meu primeiro livro. Eu era um menino, e ele um homem imenso de alegrias. "Meu filho é um escritor, meu Deus, eu não tenho como agradecer", era o início de um texto seu no caderno dos poemas, no dia seguinte ao lançamento.

Ele prosseguia agradecendo e dizendo "Eu sei que ele nunca vai se perder na vida, os homens que amam as palavras não desamam as pessoas".

As palavras foram sempre minhas companheiras. Nas leituras e nas escrituras. No sagrado que leio das vidas que observo e no sagrado dos silêncios que concedem a mim a autorização para ler minha alma.
 
Na minha alma, ainda vivem meu pai e suas letras nascidas com tanto vagar. Era calmo meu pai. Era leve. O bom de ele habitar minha alma é que posso visitá-lo com frequência. E acreditar que a herança maior que um pai pode deixar a seu filho é um texto de bondade.
 
Meu bom José, meu pai, ensinou a mim o texto e o contexto. Nas páginas envelhecidas, as páginas da vida que permanecem. As compreensões dos erros dos outros que doeram nele e que ele perdoou. E uma decisão inegociável de jamais viver para vinganças.

Em uma das últimas páginas, ele escreveu, "Meu Deus, como é bom viver, como eu gosto de viver".

É, por isso, que ele ainda vive!

Publicado no jornal O Dia, em 28 04 2024



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