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O IRASCÍVEL SABARÁ
Acadêmico: José Renato Nalini
Explosões de ira entre magistrados da cúpula não constituem novidade. Integram o repertório da História do Poder Judiciário brasileiro

O irascível Sabará

Até há pouco, prevalecia a ideia de que magistrados eram seres impenetráveis. Circunspectos, contidos e reservados. Pouco falavam e, quando o faziam, era nas sessões de julgamento.

O julgador seria a efígie da serenidade. Aspecto exterior da prudência, a qualidade mais necessária a quem decidirá sobre a liberdade, o patrimônio e a honra do semelhante.

Essa concepção evanesceu-se. Não é preciso explicitar os motivos. É outra e muito diversa a imagem que os brasileiros têm de seus juízes. A partir da intimidade com que, nas redes sociais, referem os integrantes da Suprema Corte.

Todavia, comportamentos insólitos não começaram agora. Há muitos episódios comprobatórios de que alguns dos escolhidos para a suprema jurisdição, longe estão de corresponder ao perfil desejável a quem se proponha proferir o derradeiro juízo no sistema Justiça.

Um desses exemplos contempla o Conselheiro Sayão Lobato, Visconde de Sabará, que presidia o antigo Supremo Tribunal e que foi nomeado Ministro do novo Supremo Tribunal Federal, logo após à proclamação da República. Tomou posse junto ao Ministro da Justiça e instalou a nova Corte, dando posse a seus pares.

O governo queria que, em vez de Sayão Lobato, fosse Freitas Henriques o Presidente do Supremo Tribunal Federal. Por razões antes de natureza afetiva do que política. Freitas Henriques era amigo de Deodoro e de Lucena, o Ministro de Estado que dirigia a política do Governo.

O velho Sabará não ocultava o seu despeito. Seu temperamento era violentíssimo. Tentou, porém, dominar-se.

Assumiu a presidência da sessão de eleição e já era manifesto o seu mau-humor. Procedeu-se à votação e, recolhidas e contadas as cédulas, coube a ele apurá-las. Abriu a primeira e leu – Freitas Henriques. Tomou da segunda, já trêmulo. Leu de novo: - Freitas Henriques.

Da terceira vez, já quase não conseguiu pronunciar o nome que lera e, daí em diante, em acesso crescente de raiva, com os dentes cerrados, ia abrindo as cédulas e pronunciando uns sons roucos, cada vez menos inteligíveis, até que, chegando à última, nada mais pode dizer. Levantou-se, bruscamente, e deixou a cátedra presidencial, apoplético e furioso.

Não declarou ter sido eleito primeiro Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Conselheiro Freitas Henriques.

Este, apesar de não haver sido proclamada sua eleição, assumiu a Presidência e acentuou que, em vista do resultado da votação, havia sido eleito Presidente e declarou que assumia as respectivas funções, agradecendo a escolha de seus nobres pares.

Melindres e chiliques existem desde que Rui Barbosa resolveu copiar o modelo norte-americano e criou o Supremo Tribunal Federal para a nova República, também adesista à forma federativa. Mera cópia do que existia nos Estados Unidos, mas equivocada, como se pode concluir até os dias de hoje. As treze colônias do Norte eram verdadeiras nações, soberanas porque independentes e nunca subordinadas a um poder central. Quando resolveram formar a Federação, só cederam à União o mínimo necessário para exercer uma tênue coordenação da convivência entre elas.

Aqui, o Brasil sempre fora comandado por governo central. As províncias não tinham autonomia. Fez-se uma Federação às avessas. Daí a disfuncionalidade do arranjo que não atende aos interesses provinciais. A União concentra todas as competências, deixa resíduos insuficientes para que os Estados-membros atendam às necessidades locais. E o constituinte ainda incluiu os Municípios como entidades federativas. Mera denominação decorativa. O que sobre às cidades, senão denominar logradouros públicos e conceder títulos de cidadania, além de mendigar junto ao governo do Estado e à União os recursos financeiros de que necessitam?

Volto ao Visconde de Sabará, cujo irmão, também Sayão Lobato, Visconde de Niterói, Senador do Império e Ministro de Justiça em 1871, era extraordinariamente violento. Ambos portadores de extrema e fácil irascibilidade. Por isso, não se espantem os ingênuos. Explosões de ira entre magistrados da cúpula não constituem novidade. Integram o repertório da História do Poder Judiciário brasileiro. Afinal, constituída de seres humanos. Erráticos, falíveis, imperfeitos, como é próprio da espécie.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 19 04 2024



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