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Acadêmico: José Renato Nalini José Maria Paranhos do Rio Branco, o Barão do Rio Branco, era um desses raríssimos exemplares de exotismo nas coisas mais simples.
Bagunça organizada Pessoas extraordinárias nem sempre coincidem, nos seus hábitos, com aquele padrão considerado ideal para a organização e o sistema de trabalho. José Maria Paranhos do Rio Branco, o Barão do Rio Branco, era um desses raríssimos exemplares de exotismo nas coisas mais simples. Por exemplo, ele não tinha, propriamente, uma mesa de trabalho. Verdade que, no início de sua gestão, na grande sala da casa de Petrópolis, com diversas janelas para a rua que o rio banhava, e que ele escolhera para seu gabinete, foi instalada uma mesa. Mas ele não admitia que se tocasse, que se arrumasse sua mesa, que dela se retirasse qualquer coisa; e, assim, pouco a pouco, ia a mesa ficando cheia de papeis, de jornais, de livros em desordem. Para trabalhar, ele empurrava aquelas coisas todas para o fundo, abria um espaço em que pudesse escrever. Logo, para colocar perto de si coisas que a mesa já não comportava, achegavam-se outras mesas menores, bancos e cadeiras. Chegava a hora em que nesse bloco de móveis, altos de papelada, já não havia jeito de trabalhar. Não se encontrava um cantinho livre para escrever. Então, esses móveis eram empurrados de encontro a uma parede. E vinha outra mesa de trabalho. Só que o processo recomeçava e não terminava nunca. As mesas repletas e imprestáveis para que nelas se exercesse qualquer trabalho, eram encostadas, umas às outras, obstruindo a sala e ocupando-lhe toda a área. Sem falar em objetos que chegavam e se amontoavam em enormes pilhas. Sem ordem do Barão, não se podia mexer para procurar e retirar qualquer coisa. Ele chamava esse conjunto, pitoresca e significativamente, de “mar morto”. Disso resultou que a sala, bem vasta, em Petrópolis, tornou-se inviável para o exercício do trabalho. As janelas já não podiam ser fechadas ou abertas. Os pacotes, livros e jornais impediam que elas fossem acionadas. Já se tornara difícil o acesso de pessoas a essa barafunda. Foi então que Rio Branco resolveu ocupar o Itamarati. Mandou preparar a grande sala dos fundos, com o magnífico arranjo e ornamentação que lhe conferiu o bom gosto de Otávio Mangabeira. Ao lado, instalou-se um banheiro e, na própria sala, um lavatório. No ângulo formado pelas paredes externas, colocou-se o leito, ocultado aos olhares indiscretos dos que entravam, por um biombo de tecido. Nesse modesto apartamento o grande Ministro viveu até o dia em que, no mesmo leito, o veio colher a morte. Quando se instalou no Itamarati, Rio Branco não alterou o seu sistema. Continuou na bagunça organizada. Organização, que só ele dominava. Mesas e cadeiras se iam abarrotando de livros e papeis, obstruindo o salão, que não chegou a ficar inteiramente inabitável, como o de Petrópolis, porque, depois de certa altura, as mesas cheias eram levadas para as salas vizinhas. Em qualquer delas, onde se arranjasse um palmo para escrever, o Barão se dispunha a escrever. Colocava nela, como padrão de escolha, um castiçal com uma vela acesa. Dia ou noite, a vela continuava acesa, pois servia para acender o cigarro. Era fumante inveterado. E nessas mesas tomava sua refeição. Espetáculo curioso. O garçon, que trazia o almoço, escolhia, dentre as diversas mesas, aquele que lhe parecia a mais conveniente. Estendia a toalha por cima da papelada. Os pratos ficavam oscilando no desnivelamento. Mas o Barão nem notava. Acomodava-se e se arranjava perfeitamente. Da desordem desse espaço de trabalho existe uma documentação impressionante. No dia da morte do Barão, surgiram alguns fotógrafos, que foram proibidos de fotografar. Mas, retirado o corpo, o desabusado fotógrafo Malta, entrou na sala e tirou três fotos. Elas não foram reproduzidas na mídia. Mas ele ofereceu um exemplar de cada ao Instituto Histórico e no seu arquivo se acham guardadas. Nelas se vê o acúmulo de mesas e cadeiras, tudo em desordem. O leito desfeito mostrava o travesseiro e a impressão do peso da cabeça. Chinelos junto à cama. A mesinha de cabeceira plena de frascos de diversos tamanhos e o castiçal, com a vela agora apagada. Um flagrante melancólico da intimidade do grande Rio Branco. Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 29 03 2024 voltar |
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