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Acadêmico: José Renato Nalini
O convívio acadêmico pode ser uma inspiração. Ali, ninguém precisa mais mostrar prestígio.
Melindres acadêmicos
Uma Academia de Letras é um complexo agregado de egos. Nada demais reconhecer que a escolha de quarenta nomes no universo dos que se consideram aptos a ingressar numa Instituição vitalícia, recai sobre quem se destaca por sua singularidade. Todas as tonalidades ideológicas, políticas, religiosas ou quaisquer outras têm assento nessa Casa em que a morte é sinal de vida. Sim. É preciso que alguém morra para que o sucessor o enalteça.
Jô Soares, o querido Jô, que integrou a Academia Paulista de Letras durante algum tempo e cuja presença era certeza de boas tiradas, às vezes sarcásticas, mas sempre bem-humoradas e simpáticas, escreveu sobre a Academia Brasileira de Letras. Paulo Bomfim, que foi decano da Paulista, possuía centenas de episódios deliciosos, que não quis eternizar no papel. Ou nas tirânicas redes sociais.
Rodrigo Octávio, nas instigantes “Minhas Memórias dos Outros”, rememora os anos iniciais da Casa de Machado de Assis. Foi em seu escritório, cedido para as reuniões de uma Academia que não tinha sede, que se elegeram imortais como Afonso Arinos, Martins Júnior, Augusto de Lima, Euclides da Cunha e Souza Bandeira. Mencionou-os porque já estavam mortos quando escreveu.
Mas continua a narrar: “Nos dias de eleição, como era natural, o número dos presentes era muito mais crescido e ali se encontravam, então, pessoas que raramente se viam e mesmo algumas que se estimavam pouco. A inspiração superior que nos congregava, porém, era tão alta e salutar, que a Academia, reunindo eminentes partidários e apologistas de credos políticos, religiosos e sociais, adversos e irreconciliáveis, jamais foi teatro do mais ligeiro e sutil desentendimento pessoal de seus membros”.
Recorda, particularmente, o dia em que se elegeu Afonso Arinos, na vaga de Eduardo Prado, 31 de dezembro de 1901. Na sala havia respeitável número de acadêmicos, entre os quais José do Patrocínio, já muito enfermo, e que, chegando, se jogou no fundo do velho e desconjuntado divã. Outros colegas se sentaram ao lado, de modo que o vulto do grande jornalista negro não era desde logo reconhecível aos que entravam na sala.
Nisso chega Carlos de Laet, que, pouco tempo antes, havia entretido com Patrocínio uma violenta e azedíssima polêmica de imprensa. Laet, sem ter visto o seu adversário, no fundo do sofá, foi apertando a mão de um por um dos companheiros ali reunidos, até que, em frente a Patrocínio, já não sendo possível evitar o cumprimento, parou e, com grande presença de espírito, perguntou:
- Camarada! Nós agora estamos de bem ou estamos de mal?
Ao que o jornalista, em sua larga habitual gesticulação, respondeu risonho:
- Mas estamos de bem, amigo!
E apertaram-se as mãos.
Isso é o que deve prevalecer numa Academia. Respeito às diferenças, polidez, cordialidade acima de tudo. José Gregori, nosso confrade recentemente admitido ao etéreo, costumava dizer da Academia Paulista de Letras, à qual frequentou com alegria e orgulho, durante os seus derradeiros anos:
- Este é o espaço mais democrático de São Paulo! Pensamos diferente, seguimos nossos credos, mas nos estimamos como irmãos. Por isso é que a Academia chama de confreira e confrade os seus integrantes.
É o padrão de conduta que se deveria reclamar para os demais setores, notadamente a política. Política, na concepção aristotélica, é a arte da coordenação da vida comum. É a forma de propiciar a todos os que pertencem a uma sociedade, a fruição de seus direitos e a fórmula de cumprimento de seus deveres e obrigações.
Necessitamos da política, pois ainda não atingimos aquele estágio em que a perfectibilidade humana, de tão apurada, tão próxima a um ápice que só existe na potência de nossa vontade, tornaria prescindível a existência de equipamentos como polícia e Justiça. A vida civilizada entre iguais resultaria numa permanente harmonia, sem ruídos, sem questionamentos que forçassem a separação ou o estranhamento entre viventes.
Afinal, chegamos ao mundo após milhões de anos de sua existência. Essas gerações não sentiram nossa falta. Durante algumas décadas aqui estaremos. Até que sejamos chamados ao mistério. E, pouco tempo depois, ninguém se lembrará mais de nós.
Por que não aproveitar este curtíssimo período para procurar ser bom, agradável, abertos ao aprendizado com o semelhante, empenhados na concretização de uma vida mais agradável para todos?
O convívio acadêmico pode ser uma inspiração. Ali, ninguém precisa mais mostrar prestígio. Já chegou ao Olimpo do reconhecimento, da amizade, da falácia da imortalidade, que apenas consiste no dever de quem chega, de rememorar a existência de quem se foi.
Melindres só servem para assunto fácil, para as amenidades cotidianas, que também não podem faltar. No mais, é respeito e afetividade.
Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 27 03 2024
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