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ÁGUA PURA? NUNCA MAIS!
Acadêmico: José Renato Nalini
Detentor de grande parcela da água doce disponível no planeta, o Brasil não faz por merecer essa dádiva poderosa.

Água pura? Nunca mais!

Detentor de grande parcela da água doce disponível no planeta, o Brasil não faz por merecer essa dádiva poderosa. Polui suas águas. Enterra seus cursos d’água para ceder espaço aos automóveis. Conspurca os aquíferos. Destrói a mata, sem a qual não existe água.

A irresponsabilidade é geral. Governo deixa de fazer sua parte no saneamento básico. Milhões de brasileiros sem água potável, muitos outros milhões sem esgotamento sanitário. Falta dinheiro para o que é essencial, sobra dinheiro para engordar Fundões Partidários e Eleitorais. Para manobras propiciadoras de um arremedo de governabilidade, para emendas propiciadoras de frágil coalisão.

A perda de noção do que significa dispor de água doce é disseminada e contamina o mundo macro e o mundo micro. Quantos edifícios desta insensata verticalização chamada São Paulo não continuam a usar as mangueiras quais vassouras hidráulicas? Os profissionais de limpeza absorvem a cultura do “estou pagando”, para desperdiçar água – e indiscriminado uso de alvejantes, sabões, tudo aquilo que vai gerar a espuma venenosa em Pirapora do Bom Jesus – durante horas. Como se não houvesse concreta ameaça de vir a faltar o líquido mais valioso no século 21.

Uma sociedade que transformou o Tietê em podre condutor de substâncias químicas e excrementos, além de servir como coletor do descarte surreal de tudo o que poderia ser aproveitado se houvesse consciência ecológica ou logística reversa, não pode se considerar civilizada.

Não faltam diretrizes normativas. O artigo 225 da Constituição da República já foi considerado a mais bela norma fundante produzida no século 20. O constituinte de 1988 foi audacioso e erigiu o nascituro como sujeito de direito fundamental de primeiríssima dimensão, aquele à sadia qualidade de vida, resultante de um equilíbrio ecológico adequado.

Prolífica legislação infraconstitucional oferece a qualquer esfera de governo o arcabouço necessário à tutela ambiental de que hoje o país se ressente. Falta é vontade política. E quando ela existe, atua exatamente no sentido da devastação, da extinção da cobertura vegetal, da cessão de espaços destinados a uma especial proteção estatal para todos os usos, a pretexto de uma discutível concessão a exigências sociais.

A insensata conurbação paulistana é um exemplo claro do desapreço à natureza, notadamente à água. Os jesuítas escolheram o planalto porque Piratininga era provida de grandes rios e de centenas de afluentes e cursos d’água de variadas dimensões. Tudo foi sacrificado em nome do “progresso”, para receber asfalto a serviço do transporte emissor dos gases do efeito-estufa, que põem em risco a sobrevivência de qualquer espécie de vida neste planeta de crescente exaustão e vulnerabilidade.

Onde a recuperação desses riachos, córregos e demais cursos d’água? Onde a restauração da mata ciliar? Onde a fiscalização e sanção aos maiores poluidores dos nossos rios?

Consta que o potencial do Aquífero Guarani já está comprometido. Seja pela infiltração de substâncias químicas no lençol freático, seja pela proliferação de poços artesianos clandestinos, hoje existentes em cada novo bloco edificado em solo paulistano.

Mais um problema resulta de pesquisa levada a efeito por cientistas das Universidades Públicas em parceria com o Instituto Butantan. O biólogo e professor da USP Luís Schiesari realizou mapeamento inédito da vida e da qualidade da água na bacia do sacrificado Rio Tietê. O uso intensivo de medicamentos é uma característica da pauliceia, senão de todo o Brasil. Quem percorre a periferia sabe que a presença de bares e templos só não é maior do que a de farmácias.

Uma população que consome tantos remédios estaria a afetar as bacias hidrográficas da megalópole? Aquilo que poderia ser suposição ou mera suspeita, mostrou-se real. Constatou-se a presença de substâncias contidas em antidepressivos, agrotóxicos, drogas recreativas e vírus em cinquenta e duas pequenas bacias hidrográficas responsáveis pela existência, ainda que patológica, do sistema Tietê.

A FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e o CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ao lado da USP, foram os responsáveis pelo financiamento da pesquisa. Detectou-se a presença de RNA do vírus da Covid em cursos d’água monitorados, particularmente aqueles que se encontram em áreas demograficamente densas e mal servidas por saneamento básico.

Antidepressivos foram encontrados na bacia do Alto Tietê, no trecho em que ele nasce, puro e límpido, em Salesópolis, até a prejudicada Pirapora do Bom Jesus. Antes, centro religioso de romarias e de caravanas de cavaleiros, hoje cenário do espetáculo deprimente da espuma produzida pelo excesso de utilização de produtos de limpeza.

Quase a totalidade das bacias que passam por espaços habitados contém de uma a oito moléculas de antidepressivos como venlafaxina, bupropiona e sertralina, dentre outras. Imagine-se o que isso pode significar em termos de efeito farmacológico sobre seres vivos.

Pródigo em editar leis que em nada se distanciam da excelência daquelas em vigor nos Estados-nação mais desenvolvidos, o Brasil cultiva a tradição de não observá-las. Por isso é que cerca de seiscentas e sessenta mil pessoas estão desprovidas de coleta de esgoto só em São Paulo. E esse cálculo é tímido, pois não se contabilizam as milhares moradias irregulares, cujo crescimento é qual metástase. Isso faz com que a mancha de poluição do Rio Tietê se mantenha acima dos cento e sessenta quilômetros de extensão.

A sociedade permanece inerte e não cobra do Estado, em suas múltiplas configurações, a observância do regramento que ele próprio promulgou e sancionou, acumpliciando-se com mau uso do dinheiro do povo, a vítima do descaso em relação à higidez da água. Nesse ritmo, logo se chegará à sua carência trágica. Água pura? Nunca mais.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 19 03 2024



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