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A MACHUCADURA DOS MEUS PÉS
Acadêmico: Gabriel Chalita
A machucadura dos meus pés doem tempos incontáveis. Não sou contador de tempos, sou contador de histórias que, nos tempos, explicam a mim mesmo que sou frágil. Frágil, suscetível a machucaduras.

Sou caminhante e caminhante que sou sei dos riscos que corro nos caminhos que caminho.

Machuquei os meus pés. Os meus pés que me conduzem caminho a caminho. Machuquei os meus pés em alguma distração. Ou não.

Os meus olhos tão sedentos de infinito, por vezes, esquecem que os meus pés estão no chão. No chão onde a vida se passa. No chão onde os sonhos se deixam de sonhar. No chão onde as dores avisam a machucadura.

Vez ou outra, é preciso parar. Parar e autorizar o choro. Parar e chorar a vida doída que faz noite no céu. Noite sem luar. Noite sem estrelas. Noite sem serenatas. Noite sem poesia. Noite, apenas.

A machucadura dos meus pés doem tempos incontáveis. Não sou contador de tempos, sou contador de histórias que, nos tempos, explicam a mim mesmo que sou frágil. Frágil, suscetível a machucaduras.

Olho para os meus pés todos os dias e fico querendo saber o tempo que ainda resta para a cicatrização. Um dia cicatriza. Qual dia? Não sei. Já disse, não sou contador de tempos.

Aprendi, inclusive, com as machucaduras, que é o tempo que me conta. Na conta do tempo, sou um caminhante. Que hora tem olhos de ver o céu em dias de poesia e outras tem de olhar os pés e deles cuidar.

As machucaduras dos meus pés escrevem histórias e inscrevem ensinamentos. Ensinamentos que os mesmos olhos que veem o céu, em dias de poesia, são capazes de ler quando as machucaduras morrem para nascerem cicatrizes.

No tempo das machucaduras, é difícil de ler. Tudo diz e não diz. Há confusões sobre medicamentos e sobre silêncios. O silêncio medica a alma. A alma medicada aguarda o tempo da compreensão.

As machucaduras dos meus pés não nasceram com eles. Meus pés nasceram caminhantes. E, caminhantes, caminharam despreocupados até que tombaram em outros pés não tão delicados, não tão cuidadosos, não tão respeitosos.

Caminhante que sou, não posso deixar de caminhar. Deixar de caminhar é deixar de ser. Sou machucadura e sou cicatriz. Sou noite e sou amanhecer. Sou o que se despede, mesmo com dor. E sou o que, mesmo com dor, se despe para novamente caminhar. Despido, sou mais humano.

Um dia, os meus pés chegarão ao solo sagrado. E, então, não haverá mais caminhos nem machucaduras. Nem mesmo cicatrizes. Meus pés serão lembrança e serão luz. Enquanto esse dia não chegar, prosseguirei caminhante.

Caminhante, valente na dor e na espera de outros caminhos e, talvez, de outros pés mais delicados para fazerem par aos meus, na fascinante ventura de caminhar.


Publicado no jornal O Dia, 25 de fevereiro de 2024.



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