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ÓDIO AO MÉRITO
Acadêmico: José Renato Nalini
Essa expressão foi utilizada por Afonso Arinos, em Paris, num almoço com Dom Luiz de Orleans e Bragança, há muito tempo atrás.

Ódio ao mérito

Essa expressão foi utilizada por Afonso Arinos, em Paris, num almoço com Dom Luiz de Orleans e Bragança, há muito tempo atrás.

Falava-se a respeito de nossa História. Arinos desabafou: “Iguape, fundada três vezes, em 1579, 1611, 1654, forneceu ao museu o único exemplar de pedra polida no Brasil. Dei-o ao sábio Dr. Von Jhering, que o mencionou num artigo especialíssimo. Pobre Jhering! Como Theodoro Sampaio, Oswaldo Cruz, Derby, Alberto Loegfren e outros, não pode permanecer na terra paulista. Ódio ao mérito, é o lema da nossa mediocracia. São Paulo é um pouco Iguape!”.

Será que é verdade que “santo da casa não faz milagre?”. Irrefutável a palavra do Cristo de que “ninguém é profeta em sua terra?”. Infelizmente, parece que sim.

Essa mentalidade tacanha subsiste em inúmeros espaços. Mas predomina em ambientes ditos eruditos. Por que essa vaidade incontida que faz odiar o concorrente? Vejo sábios se digladiarem – com punhos de renda, conforme se dizia antigamente – quanto ao número de seguidores nas redes sociais.

O universo jurídico é um bom exemplo desses estéreis duelos de vaidade. O que está em jogo não é a harmonização, ou a obtenção de um bom acordo para o cliente. O que vale mesmo é destacar-se, propalar as estratégias de procrastinação do processo, valendo-se de expedientes que confirmam que a pugna judicial se transformou numa verdadeira arena de astúcias. Onde a esperteza está acima da busca do justo.

Pode-se pensar que isso só ocorre no âmbito da advocacia, pois há dois milhões de profissionais lutando pela sobrevivência. Nem todos podem ser recrutados pelos bilionários envolvidos em dramas merecedores de manchetes. Mas o ambiente não se torna tranquilo nas carreiras jurídicas estatais, principalmente a Magistratura e o Ministério Público.

Quando um paulista almeja alcançar um Tribunal Superior, encontra “fogo amigo” muito cruel. Enquanto outros Estados da Federação se unem, para levar alguém da região, aqui o exercício é elaborar dossiês que impeçam o interessado de atingir seu desiderato.

Quem chega a um cargo de relevo, ou fez a romaria dos áulicos, ou é parente de alguém. O nepotismo na política partidária profissional é um dado facilmente constatável. Não é preciso ciência para isso. basta uma pesquisa empírica.

A coragem para dizer que “o rei está nu” custa caro a quem é capaz de enfrentar a turba difamatória. Isso sempre foi assim. A História está repleta de exemplos dessa conduta destrutiva. Quando Martim Francisco Ribeira de Andrada, o terceiro desse nome, divulgou parte de sua biografia sob o título “Viajando”, o seu diário colheu acerbas críticas de Monteiro Lobato.

Este escreveu então:

“Essa criatura, rija, tesa, dura, inamolgável, amiga da Pátria, insulta os nossos brios republicanos com a sua resistência de Scevola, e conspurca o quadro maravilhoso de nossa modernidade com a insolente atitude de varão de Plutarco. É forçoso que lhe demos de beber a cicuta de Sócrates. OU isso, ou empalhá-lo num museu como antiqualha fóssil, ressurtida em nossa era pela mais estranha aberração atávica”.

O mesmo Lobato, hoje considerado por alguns como o Walt Disney brasileiro e, por outros, tendo sua obra revisitada porque preconceituoso, ao criar personagens extraídos da realidade da servidão brasileira.

Esta troca de espinhos, este arremesso de lama à honra alheia não poupa ninguém. Parece que nossos sistemas de formação do caráter falharam. Uma educação de qualidade deveria criar seres racionais superiores, afeiçoados a uma convivência harmônica, providos de tolerância e de capacidade para levar a sério o respeito absoluto a valores com os quais não se pode transigir.

Em lugar disso, criamos competidores cruéis, que não se pejam de adotar métodos abusivos para vencer a corrida do exibicionismo, da fama, da celebridade, do poder ou da proximidade com o poder.

Mérito, ora, o que é mérito? O importante é parecer ser, não ser. Virtude é para os incapazes de brilhar na sociedade do triste espetáculo em que a humanidade fez questão de se converter.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 15 02 2024



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